Maria Clara Lucchetti Bingemer,
teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. (*)
Sim, fui da geração que mamou a língua e a cultura francesas juntamente com o leite materno. Sim, estudei em colégio de freiras francesas, onde o ensino do francês, da cultura e da literatura francesas era obrigatório e muito exigente. Sim, meu coração se mexe com força quando ouço a Marseillaise. Sim, acho Paris a cidade mais bela do mundo, vista de qualquer ângulo. Todo o meu perfil e minha biografia dizem isto.
Mas será que dá para negar a afinidade com a beleza e o bom gosto que tudo que é francês tem? Não falemos da comida. Olhemos apenas a moda, a propaganda, o cinema, o teatro. Mais do que isso, olhemos a história, a cultura, as artes, a música, a literatura, o pensamento, a inteligência. Sem falar da beleza da língua, que parece música em si mesma. Shakespeare que me perdoe, mas não há nada comparável, em pureza e requinte, ao ritmo do verso alexandrino em uma tragédia de Racine. E muitos dos grandes filósofos alemães, com seu duro e complexo idioma, eram muito melhor compreendidos quando traduzidos ao francês.
E mais: voltemos nossos olhos para 1914. E mais ainda, para a década de 1940. Quem, deste lado do mundo, não se sentia francês até o último fio de cabelo ao acompanhar o heroísmo dos franceses diante dos exércitos do Kaiser? Ou quem não sentia como seus os feitos subterrâneos da Resistência, que sabotava inteligentemente a força bruta nazista? Quem não acompanhou com emoção o discurso do então ministro André Malraux, quando os restos do chefe da Resistência, Jean Moulin, chegaram a Paris para serem solenemente sepultados nos Invalides?
É possível ouvir Edith Piaf e sua voz despedaçando garganta e alma sem emocionar-se até as lágrimas? Independentemente de concordarmos ou não com as posturas do general de Gaulle, alguém negará que se tratava de um estadista e em várias ocasiões o Ocidente esteve pendente de seus lábios e de suas decisões? Quem não ficou perplexo com maio de 1968, reconhecendo que ali acontecia um giro decisivo na história da cultura?
Em termos religiosos e eclesiais, o mundo deve à Igreja da França alguns pioneirismos fundamentais. A experiência dos padres operários, que fizeram do submundo das usinas e das minas seus claustros e capelas, plantando de novo, em plena secularidade, o evangelho dos pobres; intelectuais que se tornaram verdadeiros fenômenos da graça eclodindo em meio ao agnosticismo e à náusea atéia, tais como o filósofo Jacques Maritain e sua mulher Raissa; o poeta e escritor Paul Claudel; a filósofa e mística Simone Weil.
Filha mais velha e predileta da Igreja, a França produziu escritores do porte de Bernanos, Mauriac, Julien Green, que viriam mais tarde a influenciar fortemente o laicato brasileiro na figura gigantesca de um Alceu de Amoroso Lima. Por tudo isso, é uma alegria celebrar o lançamento do Ano da França no Brasil. Cultura francesa e brasileira estiveram sempre próximas, trocaram abraços, fertilizaram-se mutuamente… Esse ano tem tudo para ser uma bela celebração. E tomara seja também uma aproximação das novas gerações – intoxicadas de uma anti-cultura pseudo-americana – com a fonte humanista que é possível ainda beber na cultura francesa. Em meio à mediocridade reinante hoje em dia, sob o domínio do imperialismo das idéias fáceis, do idioma pobre e imposto através do computador, tomara que o Ano da França no Brasil nos recorde a beleza de refletir, aprofundar-se, e ler, ler muito. E fazer fila diante de museus e não de shoppings. E crer no ser humano e em sua capacidade de criar e produzir cultura, beleza, enlevo, profundidade… com sobriedade e bom gosto.
(*) Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape