As cores não haviam mudado. O cheiro da sala ainda era o mesmo, embora menos forte menos acentuado. Uma mistura de tempos e de coisas: do fumo inglês usado no cachimbo que ainda estava sobre a mesa; do desinfetante colocado para combater os insetos que atacavam os livros; do perfume que ele usava, misturado aos odores da volta, do cheiro do seu corpo na bata de pintor. Tudo continuava igual e se repetia nas lembranças, nos desejos, no desespero da espera, um desespero que já era loucura. Medo de continuar amando, escondendo no amor, a culpa o medo.
Rebeca queria de volta o passado. E ele estava ali, enterrado naquela sala. Os pincéis ainda se encontravam sobre a mesa. Peças de cerâmica, inacabadas, espalhadas por toda parte cobertas de poeira. Um cheiro de tinta velha impregnando o ar. Nada mudara na velha sala. Na triste sala. Na sala escura. Na sala.
O retrato colorido de Moisés abdicara de suas cores primitivas, desbotara. As fotos coloridas acompanharam o tempo. O olhar dele, no retrato revelado há tanto tempo trazia presa a expressão mentirosa que só agora ela conseguia ver. A cor dos olhos se perdera, a mentira ficara. O azul brilhante dera lugar a uma cor indefinida, inexpressiva.
“O que restara dele? De que poderia sentir saudade?” Rebeca refletia: talvez das mentiras que a haviam feito feliz. A verdade a fizera sofrer. Saber de tudo não tornara sua vida melhor. A imagem que recebia dele lhe bastava. Ninguém podia entender que se pudesse amar alguém assim. Mas, ela podia e amava. “O que você encontra nele”? perguntavam. Nem tentava saber o que era, não importava. Mentia com tanta convicção acreditando no que contava, que também ela passou a acreditar. Fazia questão de acreditar.
Jamais quis ouvir qualquer comentário contra ele. Para que saber de coisas que a fariam sofrer? Moisés dizia: “é inveja”. Rebeca acreditava. Mentirosos eram os outros. E os outros não interessavam. Quem a abraçava e beijava, fazia carinho, era ele. Para ela não importava a verdade se a fizesse sofrer. Ser feliz era o que importava. “No teatro é assim”, pensava “atores representam e vivem o que representam. Eu era seu palco, ele o ator que eu amava.”
Rebeca continuou na sala muito tempo, muito tempo ainda. Na parede, ao lado do piano, viu o retrato, pintado por ele, refletido num grande espelho. Ficou confusa diante da imagem duplicada. Só então percebeu, a expressão do olhar que dava ao seu rosto um ar aparvalhado. “Pintou-me como me via” pensou. Descobriu-se na tela como se houvesse aberto a porta de um armário para dar de cara com uma estranha. “Via-me assim?” Sentiu raiva. Quis destruí-lo. Voltou-se, viu-se refletida no espelho parecia uma cópia da tela, a expressão era a mesma. Sobre seu ombro o retrato lhe fazia sombra. Havia naquele rosto um século de zombarias. Não se reconheceu na mulher refletida. “Olha-me como se me pedisse contas da minha alma”.
Enfurecida quebrou o espelho. Pedaços do seu rosto espalhados pelo chão, revelavam sua verdade. Em cada um deles a dor repetida, repetidas as mentiras, os sonhos, a crença espoliada. Pela janela aberta, Rebeca partiu.
A alma perdida soltara as amarras. Perdera-se no mundo. Nos campos verdes dança. A longa saia vermelha, levanta do chão a poeira de muitos séculos. A mulher liberta de sua dor percorre o mundo das mentiras que a fizeram feliz.
Obs: Texto extraído do livro da autora – O Olho do Girassol –