Marcelo Barros 26 de maio de 2009

Todas as tradições espirituais conhecidas no mundo, de um modo ou de outro, insistem na dimensão sagrada do ser humano e mesmo de todo o universo. As religiões afro-descendentes vêem na água, nas árvores e nos elementos da natureza a presença de manifestações divinas que são os Orixás. Quando alguém é tomado por uma destas forças, se reconhece ali a presença divina na pessoa. No cristianismo oriental, os pastores antigos insistiam que o objetivo do ser cristão é receber o Espírito Divino para se viver de sua inspiração e orientação.

Na Bíblia, o livro do Gênesis diz que, no inicio da criação, Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. (…) Deus criou o ser humano à sua imagem. À sua imagem, o criou, homem e mulher o criou” (Gn 1, 28- 29). Um dia, perguntaram a João Crisóstomo, pastor da Igreja em Constantinopla, (século IV), porque o texto, no inicio, fala em “imagem e semelhança” e depois, só retoma a palavra “imagem”. O pastor respondeu: “Todos somos criados de acordo com a imagem de Deus. A imagem divina é algo que todo ser humano tem impresso no seu ser mais íntimo. Mesmo a pessoa de vida mais errada tem oculto no seu interior esta imagem. Mas, a semelhança é vocação. Devemos e podemos nos tornar semelhantes a Deus. Isso depende de nós”. Este processo de conversão pessoal, os pastores orientais chamavam de “divinização”.

No próximo domingo, cristãos de várias Igrejas celebram a festa de Pentecostes, encerramento das festas anuais da Páscoa e consequência da ressurreição de Jesus: a doação do Espírito Divino a toda pessoa que aceita recebê-lo. Pela energia da ressurreição de Jesus, o Espírito Divino se espalha em todo o universo para “restaurar o que está seco, curar o enfermo, endireitar o encurvado, aquecer o frio e consolar o aflito”.

Para a religião judaica, Pentecostes é a celebração da aliança íntima de Israel com Adonai, iniciada no monte Sinai e vivida através da interiorização da lei divina. Para os primeiros cristãos, Pentecostes representou a vinda do Espírito que fez com que judeus e adeptos de diversas raças e nações, cada pessoa ali presente pudesse compreender, em sua língua e cultura própria, a mensagem do Espírito (At 2). Hoje, mesmo quando somos de um mesmo povo e falamos o mesmo idioma, muitas vezes, não temos a mesma linguagem cultural. Podemos até pertencer à mesma confissão religiosa, mas nem sempre nos compreender. É o Espírito Divino que nos dá a graça de acolher a cultura diferente do outro e entrar em diálogo com o seu modo de ser, de viver e compreender a fé. Um filósofo dizia: “Dialogar é passar ao logos do outro”.

O Espírito Divino habita em nós, não como “um inquilino ou locatário da alma”, porque isso implicaria no dualismo entre Deus e ser humano. Ainda há Igrejas que falam de Deus como um Tu muito separado de nós. Neste caso, é uma divindade a qual devemos agradar para receber benefícios na vida concreta ou, ao menos, para não ser castigados. Ao contrário, Santo Agostinho ensinava que Deus é mais íntimo a mim do que eu mesmo. A presença divina não é mais separável do nosso ser do que dois pólos de um mesmo imã. A espiritualidade hindu tem razão ao sublinhar o caráter de interioridade e de imanência em nós desta presença e atuação divinas. Esta experiência é dom divino. Não é fruto de esforço, mas devemos nos abrir a ela. Se, por acaso, ocupamos nosso ser com uma infinidade de desejos consumistas e dispersões ruidosas, o Espírito em nós não encontra forma para se manifestar.

Para evitar isso, os espirituais organizam suas vidas de forma diferente do modelo comum, vigente no mundo. Mas, se pode viver isso na cotidianidade do emprego, da vida familiar e dos compromissos laicais. Esta dimensão da quietude e do “habitar consigo mesmo” não pode significar nenhum individualismo ou fechamento à experiência do outro e à solidariedade social e política que seria a manifestação profunda e permanente deste amor divino em nós.


O Baghavad Gita, que para os hindus é como o Evangelho para nós, cristãos, exprime em poesia esta experiência essencial:
“Todos os seres estão em mim e eu não estou contido neles.
Entretanto, os seres não se prendem em mim.
Compreende esta forma soberana da unidade:
Alguém que carrega em si os seres todos,.
Mas, neles não se encerra.
Eu sou o ato que os fez ser” (IX, 4- 5).

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor. www.empaz.org/

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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