[email protected]
http://blogdjanirasilva.blogspot.com/
Sentada junto à janela escuto o monitor registrando as batidas de um coração vigiado. Lá fora passos vão e vêm, ruídos de ambulâncias, telefones que tocam, pessoas que falam. Enfermeiras apressadas. Médicos preocupados.
Alguém descansa porque seu corpo não está bem. Os barulhos do mundo o perturbaram. É preciso descansar da vida, sem morrer. Lá fora o mundo não consegue parar. Em silêncio, junto à janela ouço seus ruídos.
Um homem canta. Lixa e pinta a parede escurecida. O barulho áspero, o cheiro forte de tinta fresca. Enquanto canta, louva a Deus numa voz arrastada e monótona como o ruído da lixa, indo e vindo, preparando espaços. A espátula toca a parede, às vezes lenta, às vezes rude, sempre constante. O cheiro da tinta se espalha com a música. Entra-me pelos sentidos como o perfume do resedá do quintal de Dindinha que se espalhava pela cozinha onde minha mãe preparava o jantar. “O cheiro do resedá me deixa triste”, dizia ela. Mas, sua tristeza não era por causa dele. Ela já era assim, há muito tempo. O resedá tem o cheiro da minha mãe, a marca da sua melancolia.
Uma porta range como se doesse abri-la. Um assobio circunda a canção, traço fino que esconde a letra, as palavras que falam de Deus, de castigos e bênçãos.
“Deus castiga”, diziam-me, eu acreditava. Um dia, disse à minha mãe: “não tenho medo de Deus, não posso vê-lo”. Zangou-se, castigou-me. Dela eu tinha medo, o castigo estava em sua mão. À noite ela conversava com minha avó. Falava, para ser ouvida, para causar medo: “o girassol é o olho de Deus, lá, no fundo do quintal ele vê tudo, principalmente trela de criança”. Pensei no girassol com seu olho enorme, esquisito, e acreditei nas palavras dela. Comecei a temê-lo.
Uma noite perguntei à minha avó sobre o seu poder. “Ele olha, toma conta, e a gente grande fica sabendo de tudo” respondia, com um sorriso malicioso.
Passei a fazer minhas trelas no oitão, do lado oposto ao quintal. Ali, o girassol não podia me ver. Mas, minha mãe sabia de tudo – sabia que eu brincava com água e com terra, que pintava as bruxas de pano com seu batom e colocava sal de frutas dentro d’água para ouvi-lo “chiar”. Via-me colocar fumo em cachimbos improvisados com flores de romã. Um dia, fumei de verdade no cachimbo da minha avó. Acordei na cama, toda vomitada e tonta como se tivesse andado num carrossel. Palmadas não faltaram e cada vez mais eu tinha raiva do girassol que me via até no oitão.
Diante do meu espanto ninguém me explicava nada e eu ficava certa de que ele era espião e fuxiqueiro. Felicidade, mesmo, era quando um secava e morria. Mas minha mãe explicava, toda misteriosa: “A semente cai na terra e outros nascem”. Sem que ninguém visse, catava as sementes e jogava no quintal da vizinha. Um dia vi um olho enorme se insinuando, por trás da parede olhando pra dentro do quintal. Não tinha jeito. Melhor mesmo era respeitar o girassol.
Foi preciso crescer para saber das coisas – Deus não castiga ninguém, o girassol não via nada, e minha mãe só sabia das minhas trelas porque me espionava. Mas, ainda hoje, quando avisto uma daquelas flores dando voltas no jardim, faço um exame de consciência e um ato de contrição.
A poeira da tinta lixada se deposita no chão, no ar, sobre as plantas do jardim. No meio delas o olho imenso de um girassol desfigurado pela tinta branca. Continuo não gostando dele.
Fecho a janela. O coração vigiado continua bem. Alguém repousa sem saber dos meus cuidados.