Começo com uma cena triste: o enterro de uma criança. O pai, tristonho, calado, perto do caixão. O momento do sepultamento chega. O pai é advertido, mas pede calma, a criança não estava incomodando ninguém. Aguardem mais, o que é feito. Alguns minutos depois, a criança se levanta do caixão e pede um bolachão. Espanto geral. O pai suspira de alívio: com a atitude, salvou a vida do filho, que, afinal, não estava morto, e, se estava, ressuscitou a tempo de não ser sepultado.

Visto o fato, ocorrido há mais de cinqüenta anos atrás, a primeira observação é a de que, não fosse a determinação do pai, Itabaiana teria perdido um dos seus grandes filósofos, porque a criança em foco não era um ceboleiro qualquer. Ao contrário, acho até, sem querer despertar maiores discussões religiosas, que algum Anjo do Senhor teve percebido que, naquele caixão, estava deitado um garoto de nome Agdo, que, pelo que desenvolveria adiante, não poderia, naquele instante, morrer, em detrimento de todas as tiradas filosóficas que iria denotar adiante. E, no instante supremo, sem dar explicações a ninguém, fez o menino se acordar e pedir um bolachão, maneira, afinal, de desviar o fato principal, materializado no morto se levantar do caixão.

Filósofo dos mais autênticos, podendo enfileirar-se ao lado de Filomeno Andrade, de Zequinha das Sete Portas, de Juca de Zé do Fumo e de Daniel de Felismino Fogueiteiro, para citar só o time mais pesado, Agdo começaria a mostrar as suas qualidades quando ainda era um simples estudante do então Ginásio Estadual de Itabaiana, época em que o apelido de Maceta ainda não tinha tirado o brilho do nome. Numa manhã de aula, idos dos anos sessenta, em um dos bebedouros do ginásio, Agdo molhou um colega que se queixou na diretoria. Agdo recebeu a pena sumária de um dia de suspensão e se mandou para casa. No dia seguinte, o pai estranhou ele não estar pronto para a aula e pediu explicações. Respondeu que estava suspenso por um dia porque tinha gasto a água do ginásio, fato que, em si, não deixava de ser verdadeiro. Só que, incompleto. Pois bem. Agdo foi ao ginásio, de farda e de moringa na mão. O diretor, Clodoaldo Andrade, árbitro da pena, na entrada do Ginásio, viu Agdo subir os degraus na maior calma do mundo, não resistindo a lhe pedir explicações. Agdo justificou-se:

– Expliquei ao meu pai o motivo de minha suspensão. Ele disse que, se o problema era a água, que eu trouxesse para o ginásio uma moringa. Eu trouxe.

Não sei a reação do professor Clodoaldo Andrade, porque, a esta altura do campeonato, ninguém fazia idéia de que o caminho a ser percorrido por aquele estudante estaria palmilhado por tais saídas. Daí o fato ficar incompleto. O certo é que Agdo, já morando em Aracaju, como estudante do Colégio Estadual de Sergipe, passou a ser chamado de Maceta. Não sei a explicação para o apelido, nem, tampouco, se seria Masseta, com dois ss, oriundo de massa, como a refletir que Agdo era peso pesado, ou com um c, como grafei, fórmula que não encontro no dicionário. Acho que, pela maneira como era pronunciado, estava mais para Maceta do que para Masseta, discussão que deixo para os bons filólogos opinarem. O que sei é que a partir daí, horizonte mais largo, o sol explode em diversos tamanhos, a queimar os ocorridos com a sua palavra e intervenção, na coletânea de fatos que, reunidos um a um, o que se faz devido, mostra todo o potencial filosófico de Maceta, ou Masseta.

É bom esclarecer para os que não nasceram em Itabaiana, nem tiveram o privilégio de lá residir, como Renato Mazze Lucas teve, que, nas terras ceboleiras, toda pessoa que é autor de tiradas diferentes é considerada filósofo. É prática da terra que vem desde os tempos coevos, e, que, evidentemente, desafia as mais elementares noções históricas, em comparação com os filósofos da humanidade, como Aristóteles, Platão, Sócrates, etc. e etc.

Em Itabaiana, os conceitos são outros, e, nestes, Maceta (prefiro assinalar seu apelido com a consoante c) é, entre os filósofos, um dos maiores, e, ademais, sem ter vivido tanto.

Outro fato, aliás, antológico, que me arrisco a contar, ocorreu em Frei Paulo, ou em Pedra Mole. As versões são tantas, embora, de minha parte, que conheço as duas grandes cidades, coloque o fato na primeira. Procissão de São Paulo, padroeiro da freguesia, a Igreja e a Prefeitura, de comum acordo, escalam pessoas, de esquina em esquina, da entrada da cidade até a Igreja, de foguete na mão, pronto o primeiro a acender o foguete assim que Dom Luciano Duarte fosse entrando na cidade. Subindo o primeiro foguete, os seguintes seriam acesos imediatamente, e o arcebispo entraria na cidade sob uma chuva de foguetes, digna de sua presença a prestigiar a procissão do santo padroeiro.

Mas, por uma dessas coisas estranhas da vida, quem chegou antes do arcebispo foi Maceta, em o banco traseiro de um opala. Ao ingressar o veículo na rua, onde o arcebispo deveria passar, o primeiro soltador de foguete mirou as pessoas no veículo, que, afinal, não era de Frei Paulo, e deparou-se com Maceta, que, num gesto espontâneo, levantou a mão direita e fez o sinal da cruz, em forma de bênção. O soltador de foguete não teve dúvida. Era o arcebispo aguardado e soltou o primeiro foguete, seguido pelos demais, de maneira que, na porta da Igreja de São Paulo, todos, padres e autoridades municipais, pensaram tratar-se do arcebispo, a banda (teria mesmo banda naquele dia?) impulsionada a tocar algum dobrado, de imediato, a chegada do arcebispo deveria ser bem solene.

O veículo que conduzia Maceta parou antes, em algum bar, onde o filósofo itabaianense desceu de violão na mão, indiferente ao foguetório. O arcebispo chegou depois e, para tristeza das autoridades locais, nenhum foguete tinha sobrado para saudar sua chegada. Depois é que alguém publicou uma nota em jornal da capital contando o fato, ressaltando a participação de Maceta com a bênção dada ao soltador de foguete.

Um dia, dos anos noventa do século passado, Maceta morreu. O Anjo do Senhor, que o fez ressuscitar na infância, desta vez, não se mexeu para evitar que Maceta fosse sepultado, nem seu pai estava mais vivo para prolongar o momento do sepultamento, de forma que não se teve outra solução senão colocar o caixão na sepultura, lá, no Cemitério das Almas de Itabaiana. Luiz Carlos Andrade, outro filósofo dos melhores que Itabaiana já pariu, discursou em seu sepultamento. Pensou em fazer comparação com o fracassado enterro da infância. Maceta, naquela época, se levantava do caixão e pedia um bolachão. Agora, se conseguisse repetir a proeza, pediria um copo de bebida. Achou que o momento não fosse apropriado para a comparação. Usou outras palavras, para saudar um grande morto, na certeza de que as suas tiradas, ainda hoje contadas e reiteradas, não permitirão nunca a sua morte total. Tinha inteira e absoluta razão.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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