Início da década de oitenta, do século passado, a população do centro urbano de Itabaiana sofreu mais que sobaco de aleijado com a falta de água, que só chegava, quando chegava, nos locais mais baixos, e, ainda assim, altas horas da noite, a desafiar a população a fazer vigília obrigatória. Em muitas ruas, era comum o uso de motor, acoplado a encanação, para conseguir levar a água até a caixa. O DESO, evidentemente, estava atento … para coibir. Em casa da rua das Flores, o fiscal do DESO pegou um morador, tranqüilamente, com o motor ligado. Ameaçou sapecar multa. O morador articulou desculpas que não foram levadas em conta. Dona Hermelina, professora aposentada, que ficava na janela a ver a banda passar, se meteu na história em defesa do vizinho. Dirigiu-se ao fiscal e perguntou-lhe, assim, de cara, se o cidadão era casado. Ante a resposta positiva, endereçou outra indagação, desta vez, carregada de tanto veneno, que o fiscal ficou tonto. Se a sua mulher não tiver água em casa, como é que ela vai lavar tal coisa? E aí aquele palavrão, que até Jorge Amado ficaria corado, foi pronunciado. O fiscal deu-se por encabulado, deixou a multa para lá e foi embora.

Mas a falta de água era assunto do dia, da semana e dos meses. De um filósofo (e em Itabaiana, até os mudos são filósofos) ouvi que terra boa para morar era Aracaju, por um motivo simples: a mulher do governador mora lá. E, com a sua assertiva, o desafio: quero ver faltar água no lugar onde a mulher do governador mora?!

Trinta e poucos anos depois, vejo Aracaju dentro do rodízio. A água faltou, ou, a água está a faltar. Apesar do mundão de água que o rio Sergipe exibe, água que deixa qualquer açude interiorano com complexo de inferioridade, Aracaju está mergulhada num rodízio. Não há água, mesmo levando em conta que a primeira dama mora na capital. Aliás, a primeira dama só, não, também o governador, seu secretariado e as mais importantes autoridades do Estado. A solução é o rodízio, enquanto a chuva não chega. Ou seja, aparentemente, a solução deve vir do céu. De outro lado, se Aracaju, capital, onde mora a mulher do governador, está assim, imagine o interior, ou o interior mais distante, onde a população está acostumada a ficar com sede e permanecer de boca fechada?

Enquanto isso, me recordo ter lido em algum jornal local, em data bem recente, a notícia de problemas de destruição no rio Poxim. Em outra leitura, a poluição toma conta do rio Sergipe. Fico a lastimar a sorte dos rios. Sem braços, para poder tirar o lixo que o sacodem, sem poder dar um bom cascudo em quem o transforma em monturo, sem boca para gritar e pedir socorro, o rio vai se enchendo de lixo, de lixo, até que um dia, a água, que lhe foi tão abundante e presente, pede licença e se evapora. O rio seca. Não fornece água devida, e, aí, então, o homem, que não cuidou do rio em momento algum, enfim, vai perceber que o rio existe, e, vai ter saudade do tempo em que rio lhe fornecia água.

Coitado do rio Poxim, seja o Mirim, seja o Assu, como coitado do rio Sergipe, incapazes de se defenderem das agressões que o homem comete, a me lembrar as fotos que, da parte do rio que passa em frente ao Parque da Cidade, na nesga de terra, mais precisamente, das suas margens, em processo criminal que presidi na 2a. Vara da Seção Judiciária do Estado de Sergipe. As fotos captavam o lixo nas margens do rio, dando destaque às garrafas de refrigerantes, que, de tantas e tantas, tão disciplinadamente arrumadas e agrupadas, que mais parecia uma foto artística. Quem vai tirar as garrafas do rio? Quem vai limpar a sujeira do rio?

É certo que a cidade, com o seu crescimento, matou os riachos que a cortavam, transformando-os em canais, porque onde uma água verde-escura corre sempre, em meio a muito lixo e muita sujeira. Foi um tento danado do homem que, para habitar a terra, sacrificou os riachos existentes no local onde a cidade foi erguida. Esse mesmo homem, agora, joga lixo nos rios, porque não há mais riacho para matar. O rio Poxim Mirim e o Poxim Assu correm esse risco, a água se tornando rara, a depender, sempre e sempre, das bênçãos de Deus, na remessa de chuvas, que encham o rio e acabem com o problema do rodízio.

A realidade é que o homem, sobretudo o homem público, por ser esta a sua obrigação, não sabe cuidar do rio. Não vejo, nas colunas políticas, que são tantas nos jornais, ninguém se lembrar dos cuidados que o rio – todos os rios – exige e reclama, entre eles, aqueles que se encarregam do abastecimento da população. Não há, acredito, e se há, peço profundas e reiteradas desculpas, nenhuma política de cuidados para com os rios, por parte do Governo, nas três esferas. Algumas escolas, de quando em quando, colocam seus alunos para limpar as margens de algum rio, notícia que a televisão mostra. Só. O mais é indiferença, na repetição da paisagem de imundície que a gente vê nos canais que desemborcam no rio Sergipe. Na ponte, próxima ao Baptistão, que liga a Av. Acrísio Cruz a Rua Cedro, o lixo, embaixo, é tão gritante, que a gente não acredita no que vê. Nas margens do rio Sergipe, adiante, no mesmo canal, quando a maré seca dá para se ver vários e vários pneus atolados na areia, em meio a sacos de plástico que a natureza não dilui. Quem vai retirar tais pneus e tais sacos?

Com a experiência de já ter matado os riachos, a gente vai avançando, agora, para matar os rios, com a vantagem, também, de contar com a aquiescência e omissão de todos. É tão difícil criar um grupo para salvar os rios, os nossos rios, que nos fornecem a água, em percorrer seu leito, em toda a sua extensão, detectar os problemas, para procurar solucioná-los, que o melhor é mesmo deixa-los à própria sorte, como se lhes dissesse, em sentença implacável, virem-se e cuidem-se, porque o homem, inclusive o público, tem outras coisas a fazer.

O certo é que o rio não despertou o cuidado do homem, como se o rio tivesse dentes para mastigar o lixo que nós lhe jogamos. Coitados dos rios, sim, que não sabem se cuidar, sozinhos, mas, coitados mais de nós, que, depois de termos matado os riachos, como já matamos, em breve, depois de assassinar, pela omissão, os rios, teremos, então, enfim, nos impregnado da realidade de não contarmos mais com os rios em atividade.

Ouvi, em palestra, no século passado, em Brasília, que a água e o lixo seriam os dois maiores problemas do século XXI. O lixo desafia a argúcia do administrador, com monturos a céu aberto. Qual dos nossos municípios [sergipanos] dispõe de uma fábrica de reciclagem do lixo? A água, bem, custa crer, a água já está começando a faltar. Contudo, se a chuva cair com abundância, pelo menos, o problema dos rios estará provisoriamente resolvido. Ou melhor, resolvido não, tangido com a barriga, como a gente diz, lá, em Itabaiana.


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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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