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A 5ª feira Santa é um dia central na tradição cristã pois é revivida a instituição da Ceia Eucarística. “Tomando o pão, disse: ‘Isto é o meu corpo’ e tomando o cálice acrescentou:” Isto é o meu sangue. Tomai e comei, tomai e bebei”. Dessa forma, a teologia, especialmente a católica e as ortodoxo-bizantinas, circulam todo o seu patrimônio de fé em torno desse momento. E isso é tão marcante, que os anglicanos estão, nessa crença, mais próximos dos católicos do que da interpretação evangélica. É curioso que Lutero, de formação católica, acreditava na eucaristia como presença real durante a celebração da Ceia – ele chamava a essa crença de “in usu”, isto é, enquanto se celebrava a Ceia do Senhor, havia presença real, após a liturgia, passava o “efeito”. O protestantismo posterior se afastou dessa crença, mas há nele uma grande reverência à celebração do momento da Ceia.

É uma prática comum nas religiões o uso da comida como algo sagrado que se oferece à divindade e ao mesmo tempo é compartilhada por todos. Portanto, o alimento como oferenda ao Deus para alimentá-lo é uma forma muito antiga de se aproximar da divindade. Não é em vão que Gilberto Freyre, no prefácio do livro de Raul Lody, “Santo também come”, apresenta a cozinha do candomblé “como um espaço de culto tão sagrado quanto o peji”. De fato, no candomblé, tudo começa na cozinha e nada pode ser comparado à energia que emana das oferendas aos orixás.É por meio da alimentação comum dos santos e dos seus adeptos que as religiões têm assegurada a sua sobrevivência. Comer nos terreiros, é estabelecer vínculos e processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e a natureza.É preciso alimentar a divindade com o sacrifício para obter favores. Ninguém pode se apresentar ao seu Deus de mãos vazias.

Os sócio-antropólogos do final do século XIX e início do XX estudaram a dinâmica do alimento nas religiões. Durkheim, por exemplo,salientou que o banquete sacrificial cria comunhão não só entre as pessoas e os deuses, mas também entre os membros da tribo, pondo-se como um dos fundamentos da partilha e da coesão social..Mauss considerou o sacrifício a partir da distinção entre sagrado e profano, ressaltando a possibilidade de passar temporariamente ao mundo do sagrado através do rito sacrificial.

Na nossa sociedade ocidental, sociedade de consumo por excelência, o alimento é uma necessidade tão primária quanto o é para todos os outros povos, mas, pouco a pouco, vamos deixando de perceber a sua importância porque a satisfazemos quase automaticamente e sem esforço. Instaurou-se um hábito e um ritmo, por causa da nossa pressa, que separa as nossa refeições da dimensão sagrada que ela contém e que está bem presente nos povos de pequena escala. Para nós não é mais significativo afirmar que o alimento é importante, que é um elemento essencial para a vida. Atualmente, ninguém quer perder tempo fazendo comida. Tudo está à nossa disposição, sob as mais diversas formas: pré-cozido, pré-confeccionado, há tudo nos supermercados e nas lojas de importados, os selfservice é o que existe de mais prático e estão à disposição de todos. Somente o comer juntos, em certas datas, conserva ainda um certo valor, servindo para estreitar laços de amizade.

A refeição sacrificial teve na história das religiões um lugar de destaque e tem relevância nos diversos códigos religiosos. É realmente possível recuperar o valor simbólico do alimento na nossa sociedade? Na verdade, a racionalidade tem o poder de suprimir o lado simbólico da vida, a ponto de Hegel sustentar que o progresso do saber teria “exaurido o reservatório dos símbolos”, deixado pela tradição. É preciso admitir que , relativamente ao alimento,a sociedade hodierna conseguiu secar grande parte do depósito simbólico.

Das refeições totêmicas dos australianos, da homofagia do culto de Dionísio, dos sacrifícios védicos e dos banquetes das religiões de mistério, até a misteriosa Ceia cristã, a história se repete. O cristianismo celebra uma refeição sagrada e sacramental que os seus adeptos conhecem bem e que está no centro da sua vivência teológica. Inácio de Loyola dizia que “Cristo deve se tornar o nosso alimento, deve ser comido pelos cristãos, para se tornar remédio de imortalidade”. Gregório de Nissa confirma que “o Senhor se une ao corpo dos fiéis para que, através da união com o imortal, o homem também se torne partícipe da imortalidade”.

O sacramento da eucaristia mantém uma afinidade extraordinária com todas as refeições sacrificiais presentes na história das religiões.

Sebastião Heber. Professor Adjunto de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho, da Cairu. Membro do IGHB, do Instituto Genealógico e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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