Oi, Maurício,
Ainda bem que estão surgindo de além mar algumas vozes mais esclarecidas e conscientes do drama sofrido por aquela menina. Este drama, foi apenas o que teve a oportunidade de ser publicado pela mídia do Brasil e do mundo. E os outros? Quem se sensibilizará com as tragédias humanas que acontecem frequentemente nas periferias das grandes cidades do Nordeste, com crianças e adolescentes?
Tenho uma amiga que é enfermeira há mais de vinte anos e que atualmente trabalha no programa “Saúde da Família”. Dizia-me ela que, a grande maioria das adolescentes e pré-adolescentes ou estão grávidas ou já pariram uma ou mais vezes, havendo, inclusive, na comunidade onde ela exerce o trabalho de enfermeira, duas meninas de 10 anos, já mães e com filho.
Como se vê, o caso é mais grave do que se possa imaginar. Essas meninas são filhas de mães abandonadas pelos maridos ou companheiros e quando não são violentadas dentro da própria família por pais, parentes, “padrastos”, homens eventuais, em geral sem trabalho, que vivem com as mães em promiscuidade com as crianças, no mesmo casebre ou barraco onde moram, são iniciadas muito cedo no sexo e na prostituição. Quanto às mães, não têm nenhuma condição moral para educar, nem financeira para sustentar os filhos, sendo na maioria analfabetas ou viciadas em droga (maconha, crac ou álcool). É uma verdadeira calamidade social que se arrasta de geração em geração.
Há, aqui no Recife, comunidades de rua, onde existem filhos e netos nascidos e criados na rua. Não haveria nada para ser feito pelas autoridades, em favor da lastimável situação dessas famílias? Como pode um abandono social desses tornar-se ancestral e passar de pais e mães para filhos e netos, a ponto de ser irresponsavelmente legitimado pela sociedade que os encara passiva e naturalmente como “comunidades de rua”, sem qualquer preocupação para o que sejam e como sobrevivem essas conhecidas, porém, solenemente ignoradas, comunidades de rua”?
A Campanha da Fraternidade deste ano chama a atenção para a violência. Entretanto, deveria chamar com muito mais rigor a atenção para e contra as causas da violência que todos sabemos, são: a ignorância, a miséria, o abandono social, o desemprego, como fatores responsáveis pela falta de perspectiva dessas comunidades carentes; a ausência da igreja e de uma evangelização baseada na fé cristã e na promoção dos pobres como destinatários primeiros da mensagem de Cristo; o individualismo da sociedade capitalista burguesa e o conseqüente desprezo pela situação dos necessitados, entre tantas outras causas e fatores que eternizam essa trágica realidade social que vemos em nosso meio.
Minha consciência de cristã vive me interpelando sobre o que eu poderia fazer, ainda que seja como a gota d’água no oceano, pois, vejo que individualmente minha ação se restringe a assistencialismos eventuais que nada acrescentam no combate a toda essa situação, podendo até ser considerados estéreis, por serem emergenciais ou circunstanciais, sem compromisso com a mudança estrutural das causas geradoras da imensa desigualdade social existente.
Às vezes, chego a me angustiar diante de um quadro tão desalentador e me pergunto: que páscoa nós cristãos vamos celebrar este ano?
Os bispos alertam para o combate à violência através da justiça que gera a paz. Os cristãos acham bonito e cantam o hino da Campanha da Fraternidade: “… é o amor que tudo alcança, só a justiça gera a paz”. Mas, como se não fossem também responsáveis pela violência, enclausuram-se em suas casas e mansões de muros altos e eletrificados e ficam tranquilos. Enquanto, por sua vez, os políticos se empenham em garantir os votos para a próxima eleição e os empresários intensificam as demissões de empregados, alegando que a crise econômico-financeira diminuiu os lucros de suas empresas, todavia, não deixam de fazer doações milionárias aos políticos para garantirem futuras benesses, mediante contratações bilionárias na esfera governamental, aprovadas, via de regra, com a interferência dos donatários.
Diante de um quadro tão escabroso, o que fazer? Rezar? Acho que só rezar não resolve. Mas, ir às ruas exigir mais assistência social, mais escolas, mais saúde, mais moradias, mais emprego, mobilização permanente contra a corrupção política e hereditária que passa de geração a geração, punição para esses políticos, e outras medidas semelhantes promovidas pela sociedade, é que poderiam dar início a um novo processo de construção de cidadania e dignidade a fim de modificar essa situação de penúria e combater não só a violência ativa quanto a violência enraizada e institucionalizada em nosso sistema político e social.
Como seria feito isso? Creio que através de movimentos sociais, de sindicatos, de pastorais, de evangelização, de organização comunitária, enfim, das organizações representativas dos diversos seguimentos sociais e comunitários, porquanto, somente através do engajamento consciente e organizado, o povo se torna forte e poderá conseguir mudanças estruturais.
Mas tudo isso pressupõe conscientização e disposição de luta. Então, caímos de novo no círculo vicioso: o povo não luta por seus direitos de cidadania porque é ignorante e não tem consciência. E não tem consciência porque não tem condições de sair da ignorância. É triste e desalentador, Maurício!
Estive participando de um curso de canto litúrgico em preparação para o Tríduo Pascal, o qual me levou a meditar sobre essas coisas, buscando luz e alento na palavra de Deus, pois não vislumbro nada que esteja sendo realizado para mudar o descalabro existente no cerne da sociedade atual.
Seria esse meu sentimento resultante do pessimismo e do desânimo por não ver uma solução ou do meu próprio comodismo em não tentar, de forma mais objetiva, lutar contra essa deletéria realidade humana? Essa é a pergunta que não quer calar dentro de mim e que não deveria calar, também, nos cristãos, em face da Páscoa que se aproxima, cuja celebração convida todos à partilha de bens e de dons e a saírem da inércia para a luta em favor do Reino de Deus que já se instalou aqui e agora.
Um grande abraço.