O curso seriado, de antanho, tinha uma vantagem na unidade da turma que mantinha todos do primeiro ao último ano, possibilitando um maior entrosamento, maior aproximação, e, no meio de tudo, as brincadeiras, os papos, as boas risadas, com que colocávamos um pouco de sal em aulas, muitas vezes, enfadonhas, a formação dos grupos, na descoberta das afinidades, na assimilação da história da escola, sobretudo nos apelidos dos professores, herança que a gente conservava como uma relíquia. Quem há de se esquecer do Morro do Urubu da cultura jurídica sergipana? E de Mister Kelsen (é assim mesmo que se escreve?)? E a figura exótica do Monsenhor Professor Doutor Alberto Bragança de Azevedo como lente de Direito Romano, na repetição das mesmas aulas de quase quarenta anos? E a irrreverência de Garcia Moreno? E o bom humor de Monteirinho a não fazer chamada, porque, afinal, não era bedel? E o professor Alencar, a apertar as mãos, no momento em que explicava os caminhos do processo penal?

E as brincadeiras, as charges que faziam do colega-sacerdote, em pose de criança, despojado de qualquer roupa, acentuando determinado parte, com a observação: fulano, quando era criança, também tirava retrato nu. Um jornal anônimo circulou, umas três vezes, com o título de O Foca, datilografadas a frente e verso de uma só folha, irritando uns e fazendo outros caírem na gargalhada, a provocar as mais profundas pesquisas acerca da autoria, nunca descoberta, e outros, como a socialite, que, ante a referência a uma colega, que tinha o mesmo nome e sobrenome, entrou em estado de pânico, porque era o seu nome de solteira, e o que dela iam pensar?

Mas, o fato mais sintomático dos meus cinco anos de Faculdade de Direito ocorreu em uma aula de Direito Comercial, ministrada pelo professor Olavo Leite. Atravessávamos o terceiro ano. A turma já estava sentada, o dr. Olavo Leite começara a falar, quando Nino, arrastando um chinelo, a camisa fora da calça, a barba sempre para fazer, entrou na sala, uma calma que todos, alunos e professor, pararam para apreciar a lentidão de sua chegada. Valmir sentava encostado à parede, na primeira fila. Sentava de uma maneira interessante, com as pernas abertas, caneta na mão, caderno pronto para anotar as lições do dr. Olavo, o corpo não ocupando toda a carteira. Quem quisesse passar por ali, teria de lhe pedir licença. Pois bem. Nino olhou para o professor Olavo, apontou para o lugar onde Valmir estava sentado e vaticinou:

– Veja, professor, que sujeito mais imundo!

É que, ao lado da carteira de Valmir, o chão estava cheio de catarro. Alguém passara por ali e tome escarro para fora. Bom. Todo mundo olhou para o chão a fim de comprovar o fato. Verdade: o catarro estava lá, em várias e diversas poças. Valmir arregalou os olhos, a boca queria se abrir para dizer alguma coisa, e não conseguia. De perto, vi sua aflição ao tentar se defender da violenta acusação, que o pegava desprevenido, e não articulava uma só palavra. Dava para ver o seu estado, os olhos faiscando, indignação ante a injustiça da acusação que lhe era feita. Não se defendeu, porque a voz não saía. Nino sentou-se. A aula recomeçou. Saímos da cena do catarro para navegar no Código Comercial dos tempos do Senhor Imperador Dom Pedro II.

Não me lembro dos desdobramentos do fato, o que teria ocorrido, ao terminar a aula de Direito Comercial. O fato escondia uma brincadeira de mau gosto. Alguém teria escarrado de propósito, para incriminar Valmir, o escolhido, porque, acho, era o único aluno do primeiro ao último ano, que tinha cadeira cativa, na fila da frente, e, ademais, encostado à parede. Teria sido Nino? Não sei. Ou teria sido outra pessoa, combinado com Nino, para pregar uma peça em Valmir? Provavelmente. Gente para tanto não faltava. As brincadeiras eram muitas.

De tudo, uma conclusão: só Nino teria coragem para tanto e só ele representava bem aquele papel de acusador. Outro colega que tivesse tomado seu lugar deixaria a cena sem graça alguma, como, por outro lado, se a vítima fosse qualquer outro, não prestava. A vítima tinha de ser Valmir, querido de todos, popular, extrovertido. Irritava-se no momento. Depois, um minuto depois, tudo estaria esquecido. A aula voltava ao seu normal, até que outra brincadeira fosse bolada pela mente diabólica de algum aluno.

Nino era um aluno alegre, cabeça leve, preocupação alguma com nada. Valmir, ao contrário, apostava no diploma para dele tirar o pão de cada dia, aluno de anotações, de discutir pontos, preocupado em aprender. Diferentes, portanto. Os dois se encaixavam bem no trama da brincadeira, porque, afinal, ninguém levaria, como não levou, a acusação a sério. De antemão, já se sabia cuidar-se de mais uma brincadeira, só que, desta vez, muito bem bolada, embora maldosa.

A Faculdade de Direito, de sala de um lado e de outro, com um pátio sombreado por oitizeiros, não fica mais na Rua da Frente. O professor Olavo Ferreira Leite faleceu há muitos anos atrás. Nino, que não utilizou-se do diploma de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, morreu há alguns meses atrás, aposentado, sem nunca ter advogado, pelo que acredito. Não sei nem se chegou a ter inscrição na OAB. Valmir foi um grande advogado na área penal, abrilhantou o júri com sua presença e voz, enveredando, depois, pela magistratura. Luta, hoje, numa briga de foice no escuro, com a diabetes, que provocou sua aposentadoria precocemente. E eu, bem, me lembro ainda do fato, malgrado os trinta e oito anos já passados. Lembro e morro de rir, porque foi o mais típico de minha passagem pela Faculdade de Direito de Sergipe, superior e muito ao da cueca samba-canção, que foi atirada na cabeça do colega, que, como professor, dava aula a uma turma de novatos, cueca que, num arremesso perfeito, lhe caiu bem na cabeça, ficando lá, por alguns minutos, ante o espanto da vítima, talvez sem acreditar na realidade que vivia. Fosse hoje, algum celular teria captado a cena, para o registro da história. E superior, também, ao tapa na cara que um acadêmico, ao ser, propositadamente, empurrado, ao cair, na tentativa de se equilibrar, teve de desferir em outro colega, o que quase gera uma tremenda briga no corredor da Faculdade de Direito.

Bons tempos os de estudante. Os antigos assim nos diziam. A gente, à época, doido para ganhar dinheiro e fazer outras coisas, era que não acreditava

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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