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A Campanha da Fraternidade-09 (CF) lançou uma tema para a reflexão-ação dos seus fiéis e de toda a sociedade: quem não se sente ameaçado pela violência? O mais grave é que determinadas situações entraram no critério da “normalidade”, algumas até contando com a conivência de segmentos da sociedade. Há um universo da droga que, às vezes parece até intransponível, com redes que alcançam o planeta. O tráfico humano para fins de exploração sexual ou trabalho escravo, é uma triste realidade que movimenta grandes somas de dinheiro. A exploração sexual se concretiza sobretudo na prostituição infantil. Uma Promotora do Ministério Público do Pará, exprime-se sobre o assunto sobressaltada:”São coisas tão bárbaras que, se não existissem vídeos e fotografias, não daria para acreditar que um ser humano possa fazer isso com uma criança”.

A violência tem gerado morte. Disso os noticiários da mídia são um testemunho diário. Há reportagens que mais parecem um banho de sangue nos expectadores. E mais uma vez surge o perigo, pela incidência, da “normalidade” do fato. Há uma coisificação da vida e da morte.

E aí pode-se fazer um paralelo entre a sociedade de consumo ( tudo é descartável, até a vida) e aquelas sociedade que chamamos, de forma inapropriada, de “primitivas”. São as sociedades ancestrais, de pequena escala, de segmento, termos empregados pela antropologia mais elementar. Lá a morte é um processo social-simbólico e não um evento momentâneo. Quando estive no Benin, participei em Cotonou, a capital, dos funerais de uma matriarca quase nonagenária. Ao lado do sentimento de dor, de saudade, havia a prevalência de uma certeza de que ela continuaria presente na família numa outra dimensão. Tanto que o costume naquele grupo era sepultar seus mortos no quintal da casa, numa pequena casa que já havia sido preparada. Nesse tipo de cultura a morte biológica não corresponde à interrupção das relações sociais, mas ao contrário, às vezes torna as relações sóciais ainda mais fortes e faz sentir, principalmente, o valor da pessoa que morre.

Nas sociedades de grande escala, que podemos chamar também de secularizadas, a morte é sempre algo violento: ou provocada ou aquela que vem inevitavelmente. Aos que choram a morte de um parente, pede-se que o façam em particular para não perturbar a paz social. Nesse sentido o velho é malvisto pois é portador da morte – enquanto que nas sociedades de pequena escala eles são verdadeiras enciclopédias ambulantes, pois são aqueles que sabem e que iniciam os mais jovens. Os nossos cemitérios modernos querem esconder a própria vocação, são jardins, com lanchonetes, floriculturas – como se quisessem desviar a atenção do mistério da morte. Tudo isso é fruto de uma horizontalidade exclusivista. A morte não apenas é “dessocializada” como também “dessacralizada”. Essa sacralidade não é somente uma relação social, mas também uma relação simbólico-religiosa. Alguns preferem que essas cerimônias sejam celebradas o mais depressa possível, “para esquecer a dor”. Em algumas regiões do Togo e do Benin, tem lugar especial o banquete fúnebre, que lembra até o antigo “refrigerium”, ceia fúnebre usada pelos romanos. A Boa Morte de Cachoeira, no primeiro dia da morte de Maria, após a Missa serve uma “ceia branca”, isto é, peixe, arroz,vinho, pão e saladas ( e nada de dendê).

A falta atual de ritualidades e de expressões simbólico-religiosas, é uma carência dos nossos tempos. Demonstra a queda do simbólico, a incapacidade de ver além da biologia e das leis da ciência, o permanecer nas relações materiais. A pessoa morre e mata violentamente hoje porque a religião não lhe serve mais de suporte, porque se entrega ao seu destino imediato e é cético com relação a tudo o que pode ser uma vida após a morte. A desumanização do ato de morrer decorre da extinção do sentido biológico-religioso. Há uma espécie de “miopia religiosa” e um escasso conhecimento da apropriação da morte por parte das antigas religiões. Em muitas religiões a morte é vista como uma viagem. É conhecida, nessa literatura, a Barca de Caronte que ajudava os mortos na travessia do rio Estige, o mais importante dos infernos. Mas a alma tinha que pagar por essa travessia, por isso o morto era sepultado com uma moeda na boca.

Na nossa sociedade são criadas estratégias de domesticação da morte. Mircea Eliade diz que, quando na sociedade a idéia do sagrado e dos símbolos parecem eclipsar-se, é necessário prestar atenção, porque na realidade eles apenas mudam de aparência.

O camino de leitura do que acontece na nossa sociedade é que a morte foi “dessacralizada”- daí a origem de tanta violência. Mas o simbólico persiste, com outras roupagens, muitas vezes desbotadas e esmaecidas, mas não desaparece totalmente.

Sebastião Heber. Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do IGHB ,do Instituto Genealógico e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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