Completei 60 anos a 10 de dezembro. Sou um dos mais destacados consensos entre os associados à ONU. Fui aprovada por 192 países. No entanto, raros os que me respeitam.
Infelizmente não recebi, até hoje, aprovação do Estado do Vaticano. Logo ele, que se propõe a defender os valores encarnados por Jesus, que coincidem com os meus.
Nasci no pós-guerra. O mundo ansiava por justiça e paz. Ao longo desses 60 anos, sofri todo tipo de violações: a Coréia dividiu-se em duas; o Vietnã teve sua população civil bombardeada pela França e pelos EUA; empresas usamericanas de produtos químicos – as mesmas que monopolizam as sementes transgênicas – chegaram ao perverso requinte de criar o agente laranja e o napalm, destinados a intoxicar letalmente seres vivos.
Fui violentada na África do Sul, vítima do apartheid, e no Oriente Médio, onde ainda sofro em decorrência de preconceitos étnicos e religiosos. Na continente africano, todos os meus preceitos são ignorados, por culpa do neocolonialismo e da indiferença das nações ricas. Estas só se lembram das africanas quando se trata de vender suas armas.
Em Guantánamo, o governo dos EUA promove descarado acinte contra todos os meus princípios. No Iraque e no Afeganistão, os excessos praticados são ainda graves.
Padeci também na União Soviética e na China. Sob a bandeira da nova sociedade, reprimiram manifestações de pensamento e religião; decretaram a censura; perseguiram opositores políticos; implantaram, em nome do socialismo, um capitalismo de Estado.
Na América Latina tenho uma trágica trajetória. Ditaduras militares seviciaram-me de todas as maneiras: prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos, banimentos, assassinatos, seqüestros de crianças…
Sofri massacres em El Salvador, Guatemala, Colômbia e Peru. Grupos paramilitares se vangloriam de violar-me. E em alguns países, como é o caso do Brasil, meus transgressores continuam impunes. Felizmente a OEA me leva a sério e trata de apurar denúncias que recebe.
Hoje, sou duramente vilipendiada pelo narcotráfico e o terrorismo. As drogas corroem profundamente a dignidade humana; o terrorismo, tanto de Estado quanto de grupos fundamentalistas, inocula no ser humano o medo e a ira como condição existencial.
No Brasil, estou longe de merecer o devido respeito. Muitos nem querem ouvir falar de mim. Julgam que sou mulher de bandido. Sou ignorada pelos policiais que torturam; e também pelos que praticam exploração sexual de crianças, discriminação de negros e indígenas, preconceito à homossexualidade e agressão às mulheres.
Sofro, de modo especial, em decorrência da estrutura injusta que perdura no país, sobretudo a desigualdade social acentuada pela falta de reforma agrária. O latifúndio figura entre os meus principais inimigos, ao lado da devastação ambiental.
Contudo, há avanços. Comissões de Justiça e Paz se multiplicam pelo país. Inúmeras ONGs se dedicam à minha causa. O governo Lula deu status de ministério à Secretaria Especial dos Direitos Humanos, à frente da qual se encontra um homem íntegro e corajoso: Paulo de Tarso Vannuchi.
Nas escolas, sou cada vez mais estudada. Há um setor da Justiça atento às ameaças e violações que sofro. As leis Afonso Arinos e Maria da Penha inibem e/ou punem uma parcela de meus agressores. A aprovação dos estatutos da Criança e do Adolescente, e do Idoso são avanços que me favorecem.
Se muitos ainda não me respeitam mundo afora, ao menos já não ousam falar mal de mim abertamente. Empresas e governos se sentem obrigados a levar em conta também meus direitos ecológicos, sociais e raciais.
Sou um projeto de futuro. Só na medida em que eu for assumida e respeitada, a humanidade haverá de desfrutar a felicidade como experiência pessoal e fenômeno coletivo.
Meu nome é Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Moacyr Scliar e Veríssimo, entre outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros.