Cabral Machado, olho no vestibulando, a sala cheia de outros candidatos, dispara a pergunta, em voz alta:

– Conhece Os Sertões?

Ou porque o candidato não soubesse que se tratava do maior livro de Euclides da Cunha ou porque pensasse que a pergunta se referia, realmente, a zona sertaneja nordestina, o certo é que a resposta foi precisa:

– Até Geremoabo, professor.

Não sei a reação de Cabral. A partir da resposta, não há necessidade de se acrescentar mais nada ao fato, para não lhe roubar o conteúdo. Mesmo que houvesse, não saberia dizer, porque não presenciei a cena. Fui testemunha de outras, de menor colorido, em janeiro de 1969, durante a prova oral de Literatura (brasileira e portuguesa), no prédio da Faculdade de Direito, da Rua da Frente. Cabral pergunta ao aluno, que não acerta uma só pergunta, se ele sabe quem é Eça de Queiroz. Resposta: é a esposa de Jorge Amado. Cabral não se impacienta: o senhor está preparado para a prova do próximo ano. Pode ir. A outro, que também nada sabia, indagou de onde era. Do povoado Ribeira, município de Itabaiana. Comentário de Cabral: então o senhor entende é de cebola. A outro, que falava miseravelmente fino, manda discorrer sobre o Machismo. O aluno, aflito, procura ver onde estava o Machismo entre as escolas literárias, sem conseguir atracar em nenhuma.

Foi só aí que tive contato com Manoel Cabral Machado como professor. A cena da minha prova oral, já contei há muitos janeiros, não interessando repetir. Na Faculdade de Direito, Cabral não chegou a ser meu professor de Direito Civil. Comecei com Gonçalo Rolemberg Leite, e, menos de um mês, passei para a turma de Artur Oscar de Oliveira Déda, com quem fiz toda a matéria. De Cabral, só a presença nos corredores, magro, imponente, um livro sempre na mão. De Jackson da Silva Lima, com quem trabalhava na Justiça Federal, recebi a incumbência de receber de Cabral o prefácio para o seu primeiro volume da História da Literatura Sergipana, impressionado com a uniformidade e a clareza de sua letra, não oferecendo nenhum trabalho a quem fosse datilografar o texto. Anos depois, quando a vista começava a lhe faltar, os autógrafos, em BRAVA GENTE SERGIPANA E OUTROS BRAVOS e APROXIMAÇÕES LÍRICAS, mostravam a deficiência da letra. O rouxinol perdia a visão, aos poucos. A letra nada guardava daquela do prefácio aludido, original que Jackson da Silva Lima deve conservar com muito cuidado.

O rouxinol perdia a visão, mas a fala permanecia forte. O orador se mantinha firme. A Academia Sergipana de Letras se reúne para homenagear Seixas Dórea, na passagem dos seus noventa anos. Cabral estava escalado entre os oradores. Saio mais cedo do expediente na Justiça Federal para comparecer à solenidade. Se a figura de Seixas era, como é, uma atração a minha curiosidade de quem gritou seu nome, tão efusivamente, nos comícios do PSD, de Itabaiana, em 1962, a presença de Cabral discursando reforçava minha presença. Era, como se, de repente, eu estivesse na Assembléia Legislativa, ouvindo o deputado Cabral Machado, da tribuna, dando ritmo a vida política sergipana. Fui. Vi. Ouvi. E, mais uma vez, me encantei. Cabral não cansava, transbordando em suas palavras os fatos de ontem, aos quais estava ligado, como homem do PSD, como advogado do partido, como político, como secretário e líder do governo e, depois, da oposição. Os acontecimentos desfilavam, um a um, a história sergipana, de período não tão distante, que era repassada em sua palavra, cronologicamente. O elogio a Seixas e a discrição de sua esposa durante o curto período do marido no cargo de governador, a figura de Leandro Maciel na presidência do IAA e a compulsória remoção de Cabral para o Estado do Paraná, salvo engano, entre outros fatos. Na voz do orador, vítima da perseguição, nenhuma palavra de mágoa ou de crítica, só a exposição do fato, até com certa ironia, sem macular a figura do líder udenista com nenhum adjetivo indiscreto. Afinal, Cabral permanecia pessedista, a linguagem medida e comedida.

Uma prova robusta está nos artigos que escreveu sobre o padre Eraldo Barbosa, por ocasião de sua morte. Nenhuma referência ao seu passado em Itabaiana e ao papel na eleição, inesquecível eleição, de 3 de outubro de 1954, quando vestiu, abertamente, a camisa udenista. Cabral só se referia ao sacerdote, na sua longa passagem como vigário de Capela. Não me contive com o fato e fiz alguns comentários, ouvindo de Cabral que o artigo abrangia apenas a pessoa do padre. Ou seja, era outro sinal do pessedismo, acrescido de toque pessoal de Cabral, da sua filosofia de evitar o ataque, sobretudo quando os artigos partiam do fato morte, aproveitando do falecido as suas boas ações. Era o seu jeito de viver, atravessando os anos e os períodos sem se incompatibilizar com ninguém, mesmo que tivesse credo político oposto ao seu.

Ouvi Cabral discursar no sepultamento de Osman Hora Fontes, na calçada do Cemitério Santa Izabel. Osman Hora Fontes foi, acima de tudo, um homem ético. Primeira frase de Cabral, que gravei. Anos e anos depois, no Tribunal de Justiça, homenageando o centenário de nascimento do des. João Bosco de Andrade Lima, Cabral falava, invocando um escritor francês, ao que parece, na assertiva de que precisava apenas de um mote para começar a sua peroração. Daí em diante, encheu o auditório com a sua voz.

A morte de Cabral Machado fez calar o rouxinol. Só o evento fatal, e final, seria capaz de fechar a sua boca. Pode a senhora morte ter tentado antes, quando os olhos começaram a enxergar com neblina. Não conseguiu. Mexeu na sua visão para matá-lo de contrariedade, quem sabe lá acerca das provocações da vida. Muitos não resistem a tamanha pancada. Pires Wynne não se conformou em perder o único olho com que enxergava. Garcia Moreno não resistiu a amputação de uma perna. Ouvi dizer. Não sei. Cabral perdeu a visão, mas não ficou mudo. Continuou falando. E, também, lendo, agora pelos olhos de outras pessoas, como permaneceu escrevendo, utilizando-se de dedos outros na digitação de seus trabalhos. O importante era estar ativo e atento, como ficou, na produção de artigos que publicava, artigos que lia com curiosidade e calma, a história abrindo espaço em suas palavras.

Quanto mais o homem avança na idade mais se aproxima da morte. É a verdade inexorável. E a morte, da qual ninguém escapa, não poupa ninguém, nem mesmo os grandes homens, como Cabral Machado foi, transformado agora em ausência, que se faz sempre eterna, a deixar a vida sergipana fortemente desfalcada. A vida e a história, aliás.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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