No Brasil e no mundo todo, grupos cristãos e ligados à luta pelos direitos humanos dedicam este mês de fevereiro às justas comemorações do centenário do nascimento de Dom Hélder Câmara. Como todos sabem, foi arcebispo do Recife durante 20 anos, foi o primeiro bispo que engajou a Igreja Católica e outras Igrejas na luta pacífica pela justiça, fundou a CNBB e morreu aos 90 anos em 1999. Até poucos dias antes, repetia: “Quero dedicar-me até o último suspiro à justiça e libertação dos oprimidos”.
No ano 2000, uma revista internacional fez uma pesquisa e ele foi escolhido, na sua área, como o brasileiro mais famoso e influente do século XX.
Como é impressionante e bom que, depois de tantos anos, a memória do Dom e o carinho do povo continuem tão fortes e atuais. Mas, confesso um pressentimento que não posso provar. Nas poucas comemorações que tive oportunidade de participar do seu centenário, fiquei me perguntando: certas homenagens e discursos não expressavam o tom de uma louvação a alguém bem morto e enterrado, que aquelas cerimônias fechavam com chave de ouro em um mausoléu precioso?
Na Nicarágua, antes da vitória da revolução sandinista, os presos políticos, encerrados em um porão da ditadura, receberam uma notícia. Um guarda entrou, todo orgulhoso do seu feito e gritou: “Acabamos de matar o comandante Carlos Fonseca!”. Thomas Borge, um dos prisioneiros, respondeu na hora, sem hesitar: “Carlos Fonseca é dos homens que nunca morrem!”.
Celebrar o centenário do nascimento de Dom Hélder precisa ter este conteúdo de testemunhar que o seu ideal e sua profecia não morreram. Que adiantam missas solenes e clericais, assim como comemorações civis belas e tocantes, se olhamos em volta e parece que tudo acabou e nada mais resta do fogo do Espírito que animou Dom Hélder e garantiria a sua continuidade? A sua memória não pode ser apenas uma recordação da vida, da obra, da genialidade e das lutas, como de um herói do passado.
É preciso encontrar modos de refazer, hoje, em expressão atual e sem cair em nostalgia reacionária, o pacto de simplicidade e pobreza que, desde o Concílio Vaticano II, norteou e orientou a vida do Dom. Principalmente, neste contexto de mundo no qual a sobriedade e a luta contra o consumismo são elementos fundamentais em um caminho ecológico urgente para salvar o mundo do caos.
Quem assume a sua herança precisa encontrar formas de se constituírem novamente como “minoras abrâamicas”: grupos de espiritualidade e resistência cultural que, nesta realidade eclesial que sofremos, testemunhem a Igreja como comunidade local e a eclesialidade como prerrogativa de todos os batizados. Somos plenamente Igreja e marcados pela liberdade da profecia. Assumamos, cada um de nós, herdeiros da profecia de Dom Hélder, o compromisso que ele propôs aos bispos em Medellín (1968): “Que se apresente cada vez mais nítido, na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação do ser humano como um todo e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a)
Temos de dar o testemunho de pessoas que, como Dom Hélder, quanto mais velhas ficam, mais abertas e livres. Se ele estivesse conosco, celebrando os seus cem anos, tentaria dar uns passos de frevo com um bloco que veio homenageá-lo e lançaria uma nova campanha “Por um respeito sagrado à Terra e às Águas”.
É claro: por baixo disso tudo e como fogo original, há a fé e a mística viva de um homem normal, cheio de pequenos defeitos, que, entretanto, mesmo nas limitações, era o exemplo vivo do que São Paulo escreveu: “Deus fez reluzir o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face do Cristo. Todavia, este tesouro, nós o levamos em vasos de barro, para que todos reconheçam que este incomparável poder pertence a Deus e não é propriedade nossa” (2 Coríntios 4, 9- 10).
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.