Bocão não é o termo correto para designar o aumentativo de boca. Bocarra, bocaça e boqueirão, sim, são as palavras gramaticalmente devidas. Contudo, é comum o uso de bocão, tomando, portanto, a boca como centro, para designar a pessoa que tem a língua grande, isto é, que fala muito ou fala demais. Bocão se liga, desta forma, ao sujeito linguarudo. Fica, assim, entendido que, na linguagem vulgar, bocão é o sujeito que tem a língua grande, prestigiando o sujeito falador, enquanto bocarra, bocaça e boqueirão se referem à boca esteticamente grande, o que é bem diferente.

É certo que bocão, de suposto substantivo aumentativo, foi elevado à condição de apelido, e, como tal, em nível local, renda-se graças ao Sr. Rosalvo Alexandre a grande tarefa de ter sido a primeira pessoa, a deter o apelido de Bocão, a torna-lo mais conhecido, façanha que se deve a sua notória condição de militante político. Mas, diga-se de passagem, não é uma exclusividade sua o apelido. Há outros Bocão, antes e depois dele. Na Justiça Federal sergipana, neste exato momento, há um servidor com tal apelido: Bocão. O apelido, no caso desse servidor, como do Sr. Rosalvo Alexandre, tanto funciona quando pronunciado de forma isolada, isto é, como Bocão apenas, como se incorpora ao nome, como se fosse um aposto sem vírgula: Rosalvo Bocão, Edivaldo Bocão. Fosse aposto, seria: Rosalvo, o Bocão; Edivaldo, o Bocão.

Mas, que a memória não me falhe, o primeiro Bocão que conheci não foi o Sr. Rosalvo Alexandre. Antes dele, trabalhando na Procuradoria da República, havia um servidor com tal apelido: Zé Bocão. O nome verdadeiro: José da Silva Lima. Era, na década de setenta, o principal servidor, encarregado de datilografar as petições do Dr. Osman Hora Fontes. Depois do Dr. Osman, era a segunda pessoa da Procuradoria, cujo quadro de pessoal, diga-se de passagem, era bastante pequeno. Além dele, só tinha outro, de nome Luiz da Silva Lima. Depois de algum tempo, foram chegando outros, outros, e aí o quadro de pessoal cresceu.

A Procuradoria da República e a Justiça Federal ocupavam a mesma sala, no primeiro andar do edifico onde hoje está instalada a Câmara de Vereadores, de maneira que a cozinha era uma só para as duas repartições. Zé Bocão circulava com liberdade por todo o trajeto reservado a Justiça Federal, o mesmo ocorrendo quando a mudança nos levou (eu era servidor da Justiça Federal, mais exatamente, datilógrafo) para o sexto andar do Edifício Estado de Sergipe, à rua Geru. A Procuradoria da República também foi.

Nos momentos de folga, reunidos no cartório ou na cozinha, entre um cafezinho e outro, a presença de Zé Bocão era constante, trazendo as novidades da rua, as notícias mais novas. Daí o apelido de Bocão, que terminou incorporado ao Zé, de forma a compô-lo: Zé Bocão. Eu participava dessa roda, contando minhas histórias, ante uma pequena platéia de servidores, muitos dos quais ex-combatentes, oriundos de outras repartições, que terminaram integrando o quadro de pessoal da Justiça Federal sergipana.

Contudo, não havia história que eu contasse que Zé Bocão não soubesse, não já tivesse ouvido falar, não lhe fosse novidade, etc. e etc. As suas afirmativas neste sentido tiravam o toque de novidade, afinal já se constituía em fato público que, obviamente, estava no conhecimento popular. Aquilo me irritava. Tudo que contava, Zé Bocão sabia. Só faltava dizer que estava lá e tinha visto tudo, circunstância que, repito, me aborrecia.

Um dia, no meio da roda, a palavra era minha. Falava sobre a morte de Euclides Paes Mendonça, no distante 08 de agosto de 1963. Como estava presente a passeata e vi algumas cenas anteriores aos tiros e ouvi, já correndo, os primeiros disparos, deitei falação, com a certeza de que, desta vez, Zé Bocão, que se aproximava do grupo, não teria como dizer que viu, que soube, que lhe contaram, etc. e etc. Enfim, era um assunto estritamente itabaianense, ocorrido já há alguns anos, de ordem política, imiscuído nos problemas tipicamente locais, de forma que não era possível, em circunstância alguma, que Zé Bocão fosse abrir a boca para se meter na minha narrativa e apagar, com sua observação, o brilho que dava as minhas palavras. Desta vez, pensava, Zé Bocão ficaria calado, revelando a mesma curiosidade dos três gatos pingados que me ouvia. Não se atreveria a se meter na minha história. Apostei.

Engano meu. Zé Bocão se meteu. Calmamente, não dando nenhuma importância a história, mostrou que a morte de Euclides não lhe era matéria estranha.

Era a oportunidade que tinha para, enfim, ser vencedor de tanto embate travado, saindo sempre e indelevelmente derrotado. Aí, então, eu perguntei, pergunta que era quase um desafio:

-E aí, Zé, você estava também em Itabaiana na tarde da morte de Euclides?
A resposta me desnorteou:

– Cheguei depois.

Explicou: Hugo Valença, dona de uma funerária, não encontrou ninguém que quisesse ir a Itabaiana levar os dois caixões. Zé Bocão, que tinha ligações com um dos cartórios, localizados à rua de Laranjeiras, foi convocado para o serviço. Aceitou. Com a kombi da funerária, foi a Itabaiana, com os dois caixões de madeira, destinados a Euclides e seu filho.

Ouvi calado. O espanto agora era meu. Zé Bocão revela-se seguro, com detalhes da viagem, da falta de disposição de outros motoristas, que, chamados a tanto, não tiveram coragem, abrindo a boca com entusiasmo, roubando a atenção que antes era minha. A estrada era de barro, a viagem seria no período da noite, quase duas horas em cima de piçarra e de pedras soltas, com ida e volta, o ambiente em Itabaiana deveria estar fervendo para amedrontar outras pessoas. Mas, Zé Bocão não teve receio algum e, com os dois caixões no veículo da funerária, se mandou para Itabaiana. Que hora chegou, não me lembro. Sei que tive de me dar por vencido. Efetivamente, com Zé Bocão ninguém podia. Silenciosamente, recuei. Era forçoso reconhecer que o adversário era mais forte. Melhor, doravante, não entrar mais em disputa. Se o fizesse, outra vez, por certo, sairia perdendo. E, cá para nós, eu já estava cansado de perder.

Quando deixei a Justiça Federal para ser juiz de direito de Nossa Senhora da Glória, a Procuradoria da República já tinha alugado imóvel. Não vi mais Zé Bocão. Anos e anos depois, no final de oitenta, já como juiz federal, Zé Bocão foi ao meu gabinete, tratar de algum processo. Estava aposentado, cabelo branco, fisionomia envelhecida. Não sei, hoje em dia, se está vivo ou se já morreu. Sei que senti uma imensa saudade dos tempos em que contava uma historia e ele me interrompia para dizer que já sabia.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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