Djanira Silva 22 de janeiro de 2009

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Aquele era o momento. Mudar. Esquecer. Esta, a parte mais difícil. A porta indicou-me o caminho. Parti. Pensei que fosse para sempre, não foi. Nada, além do esquecimento, é para sempre. Naquele dia, chorando e desesperada, Dóris jurou que esperaria. Acreditei.
Indeciso, parei diante da porta que me dividia com a rua. Por trás da porta uma história. Uma história que me pertencia com todos os mistérios, dores e prazeres e que ficara interrompida à espera de que eu voltasse para continuá-la. Dóris estaria esperando. Eu sabia.
Tudo estaria como antes, ela prometera. Minha presença marcando os espaços. O sofá, os óculos que eu havia esquecido, o último livro que estivera lendo, certamente estariam ainda sobre a mesa de madeira escura, recoberta pelo mármore branco que me dava arrepios.
“Tudo como antes”, eu pensava.
Continuava parado diante da porta. Não conseguia entrar. Por que? Não tinha o que temer, ela estaria à minha espera, prometera chorando. “Será tudo como antes”, dissera. Acreditei.
Amava-me, isto eu sabia, tinha certeza. Certamente conservaria tudo como era antes.
Um sorriso brincalhão iluminava os olhos de Dóris. Nos nossos momentos de intimidade seu olhar, risonho, transparente, de cor indefinida deixava-me seguro dos seus sentimentos. Havia um mistério que me intrigava, mas logo vinha-me a certeza – era amor.
“O homem sempre cansa”, pensei. Resolvi partir. Conversamos. Chorou. Pediu. Implorou. Quanto mais frágil se tornava, mais irredutível era a decisão.
Sorri, quando ela me disse: “Nunca mais vou sorrir, nem cantar, nem viver.” Sendo homem, acreditei. “Deixarei tudo como está, esperando tua volta”. Acreditei.
Parti tranqüilo sabendo que ao voltar tudo seria o mesmo do mesmo que sempre fora.
Visitei monumentos, praias, museus. Vi estradas ladeadas de hortências e verbenas, caminhos cobertos de flores, árvores seculares, mulheres que ignorei porque nenhuma delas era Dóris. Cansei. Cansei de tudo – das flores que vi, das mulheres volúveis que não consegui amar, das salas frias dos hotéis sem a presença da mulher que eu queria, dos quartos de dormir impregnados de perfumes estranhos. A saudade de ver tudo como era antes me fez voltar.
Enfrentei a porta, a mesma que se abrira para me deixar passar muitas vezes. A aldraba como se fosse a mão de Dóris esperava que eu estendesse a minha para me receber.
Antes de entrar, procurei lembrar em todos os detalhes tudo quanto eu deixara, Lembrei de Dóris sentada na cama chorando magoada, “ficará tudo como era antes até você voltar”. Palavras. Sendo homem acreditei.
O pensamento caminha pela casa. No quarto, a cama ladeada por duas mesas pequenas, em cima, retratos de momentos especiais. Os vestidos jogados sobre a cadeira, sapatos espalhados pelo chão, vidros de perfumes abertos sobre a penteadeira. Dóris era assim, desarrumada, não punha ordem em nada.
Iludi-me com as mudanças. Nelas não encontrei novas emoções porque as queria fortes, definitivas. Sendo homem, acreditei na minha força, em criar um mundo à minha imagem e semelhança. Quando as coisas começaram a me cansar senti uma saudade imperiosa que me obrigou a voltar para as coisas que haviam ficado com a promessa de continuarem “como antes”. A rotina me fazia falta. Não pude ser feliz sem ela.
Permanecia diante da porta.
Cauteloso estendi a mão, coloquei a chave na fechadura. Com um rangido quase doloroso ela se abriu. Entrei na sala. Atordoado percebi que tudo fora mudado. A decoração não era a mesma, a mesa fúnebre fora trocada. Flores. A iluminação indireta dava um toque de requinte aos móveis, ao tapete novo, a todo, enfim. Era uma sala diferente. Pensei haver me enganado.
Pareceu me ver o olhar de Dóris sorrindo em toda parte. Parei para ordenar minha surpresa. Subi as escadas recobertas por uma passadeira azul. Música vinha do quarto. A porta não estava fechada. Escancarada como uma risada, me esperava, aguardava o meu espanto tudo ficará como era antes, eu repetia, como antes.
Pela porta aberta vi Dóris adormecida. Não estava só.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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