Marcelo Barros 6 de janeiro de 2009

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As agências norte-americanas noticiaram que Ernie Chambers, senador democrático por Nebraska, abriu na justiça dos Estados Unidos, um processo criminal contra Deus. Ele acusa o Criador de ser responsável pelas contínuas ameaças terroristas que prejudicam milhões de pessoas no mundo inteiro. Ele culpa a Deus de provocar terremotos, furacões, guerras e nascimentos de crianças com má formação. Deus teria ainda distribuído, em forma escrita, documentos considerados sagrados que servem para transmitir medo e insegurança às pessoas só com a finalidade de conseguir obediência total e servil.

O processo caminhou até o Tribunal de Justiça, mas o Juiz encarregado do processo respondeu ao senador que não poderia abrir o processo contra Deus e condená-lo porque Deus não tem um endereço fixo e reconhecido. “Se o senhor não tem um endereço postal certo do acusado e um número de telefone com o qual possamos nos colocar em contato com ele, não temos como convocá-lo a uma audiência e julgá-lo”. “Mesmo à revelia, podemos fazer o julgamento, mas depois, como contatá-lo?”.

Isso me lembra que, nestes dias do começo de janeiro, no Centro-oeste e em várias regiões do Brasil, os grupos de folias de Reis cantam “Deus vos salve, casa santa, onde Deus fez a morada, onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada”. Conforme estes devotos, o endereço de Deus é a casa dos companheiros, o lugar dos pousos e da alegria da festa dos Santos Reis que foram os primeiros intelectuais do mundo a cultuar a Deus, através do menino Jesus que, conforme a tradição acabara de nascer.

A intuição que estes pobres transmitem ao mundo em suas canções é que Deus não é todo poderoso e culpado de tudo o que acontece. Se fosse assim, eles culpariam a Deus de tantos sofrimentos e desventuras de suas vidas. Ao contrário, agradecem a Deus estar sempre com eles na resistência. O padre Ernesto Balducci, filósofo e espiritual italiano, dizia com convicção: “Enquanto não renunciarmos à idéia de um deus onipotente, não compreenderemos o que é o Natal”.

De fato, o mundo está cansado de guerras e violências, cometidas em nome de Deus. Esta imagem clássica de um Deus todo-poderoso, responsável por tudo o que acontece e sem o qual nada acontece, merece mesmo a acusação e o processo do senador Chambers. Antes dele, o escritor José Saramago tinha escrito ao 2º Fórum Social Mundial protestando contra todas as mortes cometidas em nome da religião e da fé. Em pleno século XXI, quando pensávamos que a humanidade estaria definitivamente livre das antigas guerras, nas quais as religiões infelizmente tinham uma responsabilidade imensa, o presidente Bush criou a guerra preventiva do bem contra o mal e a justificava com a Bíblia.

Atualmente, o povo dos Estados Unidos e toda a humanidade tem dito de forma clara que não concorda com o seu deus guerreiro e violento. Prefere o Deus pobre e pequeno das folias de reis.

Em um livro de meditações cotidianas, o irmão Roger Schutz, pastor evangélico, prior da comunidade ecumênica de Taizé, deixou claro: “Deus não castiga ninguém. Deus só pode amar e só ama. Se não, não seria Deus”.

As folias recordam com tristeza a história de Herodes, um poderoso que, assim que Jesus nasceu, decidiu matá-lo porque, justamente, tinha medo da concorrência e de ter de lidar com um novo rei que poderia ameaçar o seu poder. Na realidade, Jesus transformou a imagem de Deus e, “ao derrubar do trono os poderosos”, como cantou Maria, sua mãe – neste sentido, parece até que Herodes tinha razão de temer – derrubou também o próprio trono de Deus. Atualmente somos todos chamados a nos tornar crianças para aprender de Jesus a espiritualidade dos reis.

O Evangelho insiste na infância espiritual e na alegria das bem-aventuranças. Muitas vezes, a tradição ocidental fixou-se em métodos de espiritualidade que tornam as pessoas sérias demais, artificialmente adultas. O Mestre Eckhart, místico medieval, ensinava que “cada um de nós tem uma dimensão mística. Esse ser místico é a criança que existe dentro de nós”. Sta Mectildes, abadessa medieval, ensina: “Deus conduz a criança que existe dentro de nós de maneira maravilhosa. Deus leva a alma a um local secreto e brinca com ela. Deus afirma: “Eu sou teu companheiro de brinquedos. Tua infância é a companhia para meu Espírito. Conduzirei a criança que existe em ti nas formas mais maravilhosas, pois te escolhi”¹ .

Não é esta uma boa descrição das folias de Reis? Milton Nascimento canta: “Dentro de mim mora uma criança, um moleque. Quando em mim, o adulto fraqueja, a criança vem e me dá a mão”² .

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¹ – cit. por MATTHEW FOX, idem. p. 276.
²- MILTON NASCIMENTO, Canção: Bola de gude, bola de meia (gravada em várias ocasiões).

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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