Frei Betto 10 de janeiro de 2009

Feliz Ano Novo aos que hoje acordaram empanturrados, dominados pela ressaca nostálgica da vida saudável que tanto anseiam e não ousam. E aos que, bem cedo, acorreram à posse de políticos, ávidos por uma fatia de poder, prenhes de sorrisos e bajulações.

Seja feliz o ano de quem multiplica as cores do arco-íris, desenha belos horizontes e besunta de chocolate as paredes interiores. E também daqueles que espetam os olhos de Narciso, esvaziam as aljavas de Cupido e miram em Afrodite a beleza da alma.

Feliz Ano Novo aos que investiram seus valores na Bolsa e, agora, assistem atônitos às oscilações do mercado, sonegados em riqueza e ambições. E aos que depositam suas esperanças na ética da solidariedade, nas utopias de mudanças, nos bens infinitos guardados no âmago da alma.

Seja feliz o Ano Novo de quem cultiva indignações junto à fonte capaz de saciar a sede de justiça, e dos ourives de coerências lapidadas na firmeza de princípios. E também de todos aqueles que dão férias ao ego e calçam as sandálias da desimportância.

Feliz ano aos artífices de irreverências, aos que não temem olhar o semelhante nos olhos e nem se julgam melhores do que os outros. E aos que trazem alegria aonde chegam e são perdulários em gratidões e elogios.

Seja feliz o ano de quem impregna o coração de teias de aranha, guarda a própria sombra sob a cama e se apresenta ao próximo despido de identidade própria. E dos que tecem intrigas com a própria saliva, destilam venenos sutis e se deixam esmagar pela inércia de começar de novo.

Feliz ano aos que plantam roseiras em abismos metafísicos, admiram o vôo dos fazendeiros do ar e não se perdem nas veredas do grande sertão. E a todos que se fazem crianças no grande circo místico, contemplam no norte a bela estrela Bárbara e assistem em si a um desdobrar de planos.

Feliz Ano Novo a quem guarda a fé do carvoeiro, invade o tempo com seu espaço de oração e deixa o espírito bailar em aleluias. E também aos peregrinos da dúvida, aos devotos da descrença e aos discípulos das idolatrias atéias.

Feliz ano a todos os colecionadores de mágoas, habitantes solitários de florestas sombreadas de ressentimentos, náufragos do desamor. E aos que semeiam alvíssaras, repartem compaixão pelas esquinas e conhecem a arte de regar amizades.

Feliz Ano Novo a quem trafega na contramão da sensatez, garimpa miudezas na vida alheia e se debruça sobre o próprio umbigo. E aos que bendizem o alvorecer desperto pela passarada, dão ouvidos ao anjo da guarda e se aninham no colo da sabedoria.

Seja feliz o ano de quem enfeita a alma de borboletas, lambuza as palavras de mel e desaprisiona a criança que o habita. E dos que criam marimbondos na quilha das idéias, apunhalam as propostas generosas e transmutam sonhos em pesadelos.

Feliz Ano Novo aos leiloeiros de afetos, aos piratas que tomam de assalto a felicidade alheia e aos que evitam se molhar nas lágrimas que suscitam. E aos que subscrevem a lei do talião, dão rasteiras em pé de mesa e catam piolhos em cabeça de alfinete.

Sejam felizes nossas expectativas para este ano, nossas intenções mais abscônditas, nossos projetos encasulados. E tragam felicidade a energia que de nós emana, o calor de nossas mãos, a coragem de dizer não ao canto da sereia.

Feliz Ano Novo ao que em nós ainda resta de velho, às nossas aspirações mais generosas, aos propósitos que nos fazem levitar em amorosidades.

Feliz Ano Novo a você, leitor ou leitora, que justifica o meu ofício e a minha razão de existir.

*

Em 2009 recordaremos 40 anos que padre Henrique Pereira Neto foi assassinado pela ditadura, no Recife; 35 que frei Tito de Alencar Lima, faleceu na França em conseqüência das torturas sofridas no Brasil; 30 que padre Francisco Jentel morreu, vítima da Segurança Nacional.

Completam-se também 30 anos dos assassinatos de Santo Dias da Silva, mártir operário, pela PM de São Paulo; Ângelo Pereira Xavier, cacique, em defesa da terra de seu povo Pankararé; Eloy Ferreira da Silva, líder sindical de Minas.

E 20 anos dos assassinatos de Valdicio Barbosa dos Santos, sindicalista capixaba, e do padre Gabriel Maire, missionário francês, em Vitória.

É hora também de celebrar a memória de dom Helder Camara, profeta de justiça e da paz, falecido há 10 anos.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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