Ex-Director do INETI* (Coimbra)
Escritor: horta.silva @sapo.pt

O “Fado”, tido em conta como expressão musical, tem origem embaciada, muito embora existam várias interpretações para explicar o ninho que o germinou e alimentou, bem como para desvendar a sua árvore genealógica, motivos de sobra para gostosa controvérsia. Cânticos moçárabes nascidos na Mouraria, espiritual negro entrado pela escravatura, lundum, modinhas brasileiras e cânticos de marinheiros trazidos para antros de boémia ou, pelo contrário, estórias cantaroladas por temidos assaltantes de faca à cinta “os fadistas” que operavam entre os destroços esfomeados que as invasões francesas iam deixando, enquanto D. João VI aguardava o futuro do reino no longínquo Novo Mundo.

Seja qual for a origem – simples ou, mais provavelmente, multicultural – o fado é, hoje, uma marca imarcescível da alma portuguesa e a guitarra faz intrinsecamente parte do fado, a pontos de o fado sem guitarra ser uma canção travestida ou mesmo nua. O fado tradicional ou castiço de Lisboa, tocado e cantado nos velhos bairros populares da capital (Alfama, Bairro Alto, Mouraria, Madragoa…) designadamente em tavernas, lupanários, pátios alfacinhas e vielas, era simples, musicalmente falando, e estava cativo de versos paupérrimos do ponto de vista literário, designa-damente quadras, que falavam de amor, traição, ciúme, morte, destino e também de ex-libris citadinos ou mesmo sobre a cidade como um todo. O fado melancólico (fado menor) era tocado em tom menor e cantado de forma lânguida, o fado alegre (fado Mouraria) era por sua vez tocado em tom maior e cantado de uma forma mais exuberante e o fado gingão (fado corrido) era cantado em tom maior simples (primeira, segunda; segunda, primeira) pormenor técnico que, em termos da gíria guitarrística, se usava designar por “caga cão”. O canto do fado castiço inclui ainda uma expressão vocal típica, que se aproxima da entoação usada por pregões de Lisboa. A fidalguia só muito mais tarde se apercebeu desta realidade quando, por motivos boémios, começou a frequentar estes lugares, não raramente em complemento de touradas e outras diversões dadas à nobreza. A estes tipos de fado, respondeu Coimbra, por intermédio da sua vida académica (repúblicas, tertúlias, serenatas, queima das fitas) e talvez por serões de nobreza – quando a corte passava pela cidade do Mondego – como forma de dar expressão musical ao Romantismo, então no seu apogeu. Do ponto de vista literário, os versos dos fados de Coimbra eram, aqui e acolá, um pouco mais trabalhados do que os dos fados de Lisboa mas, não obstante a intenção, há que considerar que a melhoria não era substancial. Letras curtas (quase sempre formadas por duas quadras) dedicadas aos encantos e desencantos da cidade, ao amor platónico e à saudade, salvo algumas excepções, onde pontuam temas como “Samaritana”. Tal como os fados de Lisboa, os fados de Coimbra eram tocados e cantados em tom menor ou maior mas, agora, de uma forma quase sempre eivada de um sentimentalismo barroco, explorando vozes límpidas e tons mais adequados a tenores do que a barítonos, facto que marcava a diferença melódica que os distingue da canção nacional. No acompanhamento do fado de Lisboa, a guitarra trinava e gemia, por vezes à maneira do bandolim, intercalando os trinados com posições, enquanto a guitarra de Coimbra acompanhava o cantor, essencialmente em posições, muito embora na introdução aos fados e em mudanças de tom, o trecho musical pudesse exibir dedilhados, mas nunca de forma napolitana ou afim. Aliás, o dedilhar de Coimbra sempre foi assaz artístico, feito de apogiaturas que embelezam a elegância da sonoridade, técnica que Lisboa também acabou por incorporar.

Com o passar dos anos, o fado de Lisboa profissionalizou-se e empenhou-se em espectáculos com fins comerciais. Abriram-se casas de fados ligadas a restaurantes, encetaram-se fortes ligações a empresas discográficas, à rádio e, mais tarde, à televisão. Deu-se corpo a uma expansão comercial, planeada por empresários competentes, expansão que começou pelas colónias e Brasil, depois, saltou para a Europa, seguidamente para a América e, por fim, para o oriente, nomeadamente Japão. O fado de Lisboa acabou por ser ouvido não só, em países lusófonos ou em antros de comunidades lusas espalhadas pelo mundo, mas também em grandes salas de espectáculos como Olympia de Paris, Town Hall, Carnergie Hall e Lincoln Center de Nova York e, mais longe ainda, no Sankei Hall em Tóquio. Um fadista de Lisboa (mulher ou homem) e os guitarristas iniciavam-se muito antes dos vinte anos e cantavam e tocavam até à velhice. O fado de Coimbra nunca se profissionalizou. Os cantores e os guitarristas de Coimbra (só homens) cantavam enquanto viviam a vida académica e depois paravam ou tocavam e cantavam, ocasionalmente, por motivos lúdicos ou de beneficência. Depois da conclusão da vida académica, de quando em vez, lá apareciam numa festa para dar um quê da sua alma. O fado de Coimbra viajou muito menos do que o fado de Lisboa e, quando o fez, foi quase sempre integrado nas deslocações de organismos académicos, nomeadamente Orfeão Académico da Universidade de Coimbra, Tuna Académica da Universidade de Coimbra, Teatro Experimental da Universidade de Coimbra, cujos espectáculos acabavam, sempre, com uma serenata de Coimbra. De quando em vez, ocorria uma serenata na rádio regional e, mais tarde, na televisão e algumas discográficas deram guarida, desde os primórdios, a importantes cantores e grupos de guitarra, facto que se estendeu pelas décadas de cinquenta e sessenta do século passado. A “Serenata Monumental” que abre todos os anos a festa “Queima das Fitas” e que, por tradição, decorre na porta principal da “Sé Velha de Coimbra” era usualmente transmitida pela RTP. A maior parte dos guitarristas e dos cantores de Coimbra ainda vivos ou estão aposentados da vida activa ou são médicos, advogados, juízes, gente das ciências e das letras, engenheiros, técnicos superiores, professores, bancários, administrativos, etc. Muito cedo, o fado de Coimbra assumiu um rumo elitista. Não descia ao povo, mas era ouvido pelo povo que tinha a sua própria música regional. O fado de Lisboa, pelo contrário, era intrinsecamente do povo, sendo desprezado pelas classes sociais abastadas e ricas e, também, pelas élites culturais. São muitas as vozes tradicionais do fado lisboeta, entre as quais se destacam a celebérrima Maria Severa e o não menos conhecido Ti Alfredo (Marceneiro) aos quais podemos contrapor, por Coimbra, os não menos célebres Augusto Hilário, António Menano e Edmundo Bettencourt.

(Continua)
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* INETI – Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial

Sé Velha de Coimbra; Palco das Serenatas Monumentais.

Serenata Monumental (Início das festas da Queima das Fitas).
Largo da Sé Velha apinhado com milhares de pessoas.

Serenata Monumental na Sé Velha. Grupo de guitarristas e
cantores de Coimbra.

À esquerda: Zeca Afonso; um dos maiores vultos da canção
de Coimbra e da música de intervenção. À direita: Manuel
Alegre; poeta contemporâneo e deputado da Assembleia da
República. “A Trova do Vento que Passa” sulcará, de forma
indelével, a história da oposição ao Estado Novo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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