Ex-Director do INETI* (Coimbra)
Escritor: horta.silva @sapo.pt

O Estado Novo soube aproveitar, para propaganda, estes dois estilos musicais e fez do fado lisboeta a canção nacional, procurando amaciar a vida de um país, cuja oposição política ao regime alcunhou por “nação dos três Fs” (Fado, Futebol e Fátima). Surgiram, nesta fase, vozes inconfundíveis no fado de Lisboa, designadamente Amália Rodrigues, Fernanda Baptista, Hermínia Silva, Carlos Ramos, Fernando Farinha, Maria Teresa de Noronha, Carlos do Carmo e muitos e muitos outros e, no fado de Coimbra, Anarolino, Luís Góis, Fernando Rolim, Machado Soares, Zeca Afonso, Sutil Roque, Barros Madeira, José Miguel Baptista, José Mesquita, António Bernardino e tantos mais. No entanto, é sobretudo no decurso da década de sessenta que se começam a dar as grandes transformações, quer no fado de Lisboa, quer no fado de Coimbra. Amália Rodrigues, que já havia rompido definitivamente as fronteiras da língua portuguesa, conhece um músico chamado Alain Oulman, filho de imigrantes judeus, que dá vida musical a belos poemas de grandes poetas portugueses, fazendo um casamento harmónico entre a erudição literária e a estética musical do fado, sem deixar de recorrer à guitarra e à viola, mas introduzindo também arranjos orquestrais que chegaram a envolver orquestras sinfónicas. Neste campo, também é justo lembrar alguns compositores portugueses, nomeadamente Frederico Valério e Frederico de Freitas. E esta enorme evolução leva Amália a cantar de forma magistral Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Alexandre O´Neill, José Régio, Fernando Pessoa e, até, Luís de Camões, coisa que, inicialmente, foi considerada por puristas, como um ultraje à mui nobre literatura portuguesa.

Em Coimbra, a evolução toma caminhos diferentes dos de Lisboa, mas não menos históricos. A militância política que, entretanto, desponta no seio da academia e de algumas élites culturais que por esta terra passaram, começa a usar o fado de Coimbra como canção de protesto e daí surgem as trovas e baladas, repescando, inclusivamente, aspectos da música portuguesa tradicional. Misturam-se temas de Coimbra com ritmos e sons oriundos de outras culturas, nomeadamente a africana. Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso são sem dúvida as figuras centrais desta nova forma de cantar e de tocar. A guitarra submete-se à viola, que acaba por ser o principal instrumento, entrosado por sonoridades oriundas de: adufes, ferrinhos, instrumentos rítmicos, etc. Vem a propósito mencionar, aqui, a qualidade de alguns tocadores de viola que ao tempo intervieram neste tipo de música, sendo de destacar, entre eles, Rui Pato. Nasce também uma nova poesia com os poetas no exílio, como Manuel Alegre, poesia essa que abandona o Romantismo e veste a roupagem da contestação ao regime, incitando à revolta. O próprio Zeca Afonso escreve belas letras das suas canções. Nasce, deste modo, uma nova e importante arma contra o regime do Estado Novo, que aproveita, de modo inteligente, os inconvenientes das guerras coloniais, da difícil vida rural do povo alentejano e da censura política. Tomam também expressão de grande mérito nesta cruzada, poetas de Lisboa, sendo de justiça destacar o nome de José Carlos Ary dos Santos. O fado de Coimbra começa então a sua vertiginosa descida. Consegue alguma reabilitação após o PREC comunista que sucedeu ao 25 de Abril, mas mesmo assim não mais encontrou o adequado reajustamento aos tempos modernos. Por outro lado, a trova e a balada também se esbatem com a estabilização do regime democrático. Embora o fado de Lisboa e a própria Amália Rodrigues tenham sofrido com o PREC, a profissionalização dos fadistas e guitarristas de Lisboa prossegue e acaba por se impor de forma natural. O fermento lançado por Alain Oulman dá frutos não só na carreira de Amália mas também no despertar das consciências para a necessidade de os futuros músicos do fado serem gente com formação oriunda dos Conservatórios e Academias de Música. E esta particularidade catapulta o fado para planos superiores.

A Amália desaparece – por força do ciclo da existência – e com ela desaparece uma voz e uma forma inconfundível de cantar, mas novas vozes e novos instrumentistas surgem no firmamento do fado de Lisboa, cada vez mais erudito, quer no aspecto da qualidade literária dos poemas, quer no âmbito dos arranjos, da técnica e da interpretação musical, afastando-se do fado tradicional, que continuou e continua, no entanto, a ter os seus fãs. As guitarras começam a ser acompanhadas também por violas baixo ou contrabaixo, violoncelo, piano, etc. evolução que acaba por atingir a dimensão de pequenas orquestras (até vinte e muitos elementos), onde a guitarra se mantém em destaque, bem colocada na frente. Carlos do Carmo, em processo de transição, Mísia, Kátia Guerreiro, Camané, Dulce Pontes são exemplos desta nova vaga, cujo expoente máximo é representado, indiscutivelmente, por Mariza – a nova diva do fado – que, tal como a Amália, foi abraçando nomes ilustres da poesia portuguesa, como Fernando Pessoa, em “Cavaleiro Monge” e “Gente da Minha Terra”, não se eximindo, pela mão de Mário Pacheco, à sonoplastia e ao gosto de um melómano com pendor para o estilo de Coimbra, facto que tem ajudado a que o fado de Lisboa seja mais canção.

Na terra, onde O Hilário cantava alta noite no Choupal e onde a voz cristalina e mui hialina de Edmundo Betencourt imortalizou “Coimbra Menina e Moça” colado às guitarras de Artur Paredes e Afonso de Sousa, é pena que o fado se tenha diluído na escorrência do tempo. Não obstante, um novo tipo de trabalho surgiu pela calada do esquecimento, semente própria para augúrios de melhores dias. Por aqui, também começou a aparecer gente ligada a Conservatórios e Academias de Música que estão a retrabalhar o fado e as guitarradas coimbrãs e a verter, de forma escrita, os seus estudos para pautas. Vejam-se os trabalhos de José dos Santos Paulo. O que passou por inúmeras gerações, saltitando do ouvido para a destreza dos dedos e para a complexa e melódica constituição dos órgãos vocais para retornar de novo ao ouvido de outrem, poderá ser executado, futuramente, com ou sem rearranjos, por quenquer que saiba música e goste do estilo coimbrão. Teses de mestrado e provavelmente de doutoramento irão surgir nestes domínios e alguns temas começam a ser incorporados nos programas de orquestras, de orfeões e de outros grupos vocais. O futuro dirá se o fado de Coimbra ou melhor dizendo a “Canção de Coimbra” encontra ou não um caminho moderno sustentável, mas a adivinhar pela extensão do percurso a efectuar, e pelos escolhos que, inevitavelmente, vão aparecer ao longo da caminhada, muita água passará por debaixo das pontes do Mondego. Fica-me a certeza de que a profissionalização e o reajustamento melódico levada a cabo em Lisboa está a aproveitar bem o que de bom existe no estilo musical de Coimbra, muito em particular no que se prende com o tipo de guitarra a usar e com a forma de a tocar. Irá a “Canção de Coimbra” ser assimilada pelo moderno “Fado de Lisboa”…sem prejuízo da manutenção das tradições culturais, quer elas estejam ligadas à velha Alta coimbrã e à sua vida académica, quer aos tradicionais bairros alfacinhas? Pela extensão da caminhada, outros que não eu, ajuizarão sobre o optimismo reservado que esta crónica contém.
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* INETI – Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial

Espectáculos de Amália Rodrigues (em cima) e de Mariza
(em baixo), destacando-se, neste, a presença de o Primeiro-
-Ministro e de ministros do actual governo português.

Em cima, à esquerda: Mariza (actual diva do fado); à direita: Amália
(ex-diva do fado). Em baixo, à esquerda: Alain Oulman, compositor ligado
à evolução do fado de Lisboa, que levou Amália a cantar poemas de
grandes poetas portugueses. À direita: o poeta Mourão-Ferreira, autor
de alguns dos poemas imortalizados por Amália Rodrigues.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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