Djanira Silva 29 de janeiro de 2009


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Revivendo momentos felizes decretamos o fim da velhice O passado é um arquivo onde se guarda o tempo e onde são preservadas as imagens e as lembranças de todas as idades. É intransferível, inalienável, inviolável, personalíssimo. Membros de uma mesma família, de um mesmo tempo, têm percepções diferentes de acontecimentos comuns. Tecnicamente existe a expressão arquivo morto onde são recolhidas informações fora de uso. Portanto, quando assumimos o lado negativo da vida, nossas lembranças vão para esse arquivo.
Manhã de maio.
Vestido branco, flores de laranjeira. Vou ao teu encontro. Juntos partimos. O riso das crianças por toda a casa. De manhã, hora de irem para a escola, sono e muita preguiça, calço-lhes as meias. A roupinha azul, o monograma no bolso, caminhos de começar a vida. As travessuras, as coisas engraçadas que diziam, o sono na hora do jantar
Vê-los crescer e enfrentar a vida.
E, de repente, tua estrada termina.Os filhos se foram levando, cada um o seu arquivo. Estou sozinha, a casa arrumada pela solidão.
Manhã de chuva. A tristeza me cerca. Escuto o pio agourento de uma coruja. Penso que vou chorar. Fecho os olhos. Nos pés de oiti, os passarinhos cantam. O vento conta histórias de uma menina que conversava com gnomos e duendes, botava rabo de pano na saia da lavadeira e pintava os bigodes do gato com esmalte de unhas, fugia de casa para brincar na rua, levava palmada, e, no dia seguinte, fugia de novo para apanhar borboletas, colher pitangas, subir no pé de romã. “Desce daí, você cai”.
Abro os olhos, saio da cama com a alma criança. Lá fora, cantam os sabiás. À tardinha junto da janela olho o jardim. Beija-flores e borboletas, rosas, cravos e lembranças. “Borboleta quando quer se perder cria asas”. A voz da mãe me alcançava, prevenia dos perigos do mundo. Perigos que me atraiam nas mudanças anunciadas.
Deixei para trás as meias soquetes, os sapatos pulseira, os vestidos de menina. Cabelos sem laços sem tranças. Ainda não é tempo de ruge e batom nem de sapatos altos. Só depois dos quinze anos. Vestidos marcados na cintura denunciam as urgências do corpo. Imitar as artistas de cinema, nas roupas e nos trejeitos era moda.
Vivo, intensamente, nas lembranças da primeira valsa, das mensagens de amor, lidas no auto-falante, das músicas de Orlando Silva, Chico Alves, Dalva de Oliveira. Os primeiros namoros, o primeiro beijo desejos à flor da pele. O perfume do pé de jasmim plantado sob a janela, leva-me de volta às noites chuvosas de maio, noites de inverno quando o cheiro molhado das várzeas se espalhava pelas ruas e praças e pelos caminhos dos encontros proibidos. Na igreja, as flores, as velas acesas, o incenso queimando e o cheiro de lavanda nos cabelos. Lá fora, encontros marcados.
Fecho a janela, guardo comigo uma alma criança que não me deixa esquecer.
Tranco-me nos olhos com minhas saudades. Já não quero chorar. Lá fora pássaros cantam.
Tenho a idade das lembranças, e quando por acaso fraquejo, faço uma transfusão de saudade.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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