Saulo Marden 13 de dezembro de 2008

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Em uma pequena embarcação, Pedro e Paulo deixaram o mar e entrarem na desembocadura do Rio Ariquindá. Iam recolher os covos deixados no dia anterior. Para eles, mais uma aventura das férias de fim de ano.
O barco, em velocidade, levantava a água que soprada pelo vento batia em seus rostos obrigando-os a fecharem os olhos. Sentiam-se livres, libertos das regras da cidade grande.
Um pouco à frente reduziram o motor. Precisavam deixar o curso principal do rio para entrar no emaranhado de canais formados pelo mangue. As raízes aéreas lembravam estacas de cercas vivas. Qualquer manobra indevida poderia por fim à aventura e à pescaria. Paulo manobrava com cuidado em ziguezague até chegar a um grande círculo formado pela vegetação. Lugar preferido para trocarem os covos. Desligaram o motor e deixaram o barco deslizar em silêncio para não assombrar os peixes. Dos dez covos, cinco estavam vazios, mas ainda assim, conseguiram alguns peixes. Dentre eles, um camurim com quarenta centímetros. Na euforia, Paulo gritou palavrões quebrando o silêncio afugentando peixes e aves: Cala esta boca, Paulo. Não vê que até as aves estão assombradas com seus gritos?

O dia escurecera quando o último covo foi instalado. A vegetação, antes verde, perdia a cor, tornava-se cinza, preta, invisível. O caminho da volta, estreito, assombroso, aflorava o medo.

Pedro sentia a responsabilidade pesar. Conduzir a embarcação por entre as raízes, que lembravam formas humanas, com longas pernas e braços, seria tarefa difícil. Havia necessidade de se descontrair para não passar insegurança ao sobrinho que começava a demonstrar medo: Nunca ficamos no escuro… Esta é a primeira vez… No ano passado não foi assim. E Pedro comentou que não se preocupasse. Dirigir barco no escuro era a mesma coisa que andar de olhos fechados pela rua que morava. Logo estariam no ancoradouro. Mas, ao virar a chave, o motor não pegou. As tentativas foram em vão. O jeito era esperar que a gasolina evaporasse do carburador e para distraí-lo disse: Olhe as estrelas no céu. Sabia que seu avô falava isso para mim quando eu tinha a sua idade? A noite vai ser das boas: sem lua, sem nuvens. Vou lhe mostrar os planetas e as constelações. Vai ser divertido, você vai ver.
O piscar das estrelas estava cada vez mais forte. A cada momento surgia um outro ponto luminoso. O escuro tornava-se claro: você sabe por que de onde estamos elas ficam mais brilhantes do que na cidade? É porque a luz tira um pouco da claridade do céu. Aqui não tem iluminação por perto. Todo esse brilho vem das estrelas e da lua quando reflete a luz do sol como se fosse um espelho. Está vendo aquelas quatro em forma de cruz? Veja se você consegue enxergar a que fica entre o braço direito da cruz e a de baixo. Ela é menor do que as outras e é conhecida como “Intrometida”. Juntas, formam a constelação “Crucis” que aqui no Brasil chamamos de “Cruzeiro do Sul”. Se você imaginar uma linha reta na vertical, saindo da estrela mais baixa até o ponto de encontro com a Terra, você encontrará o Sul. É muito importante saber disso. Ela serve para nos orientar sobre os quatro Pontos Cardeais, ou seja: onde fica o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste. É muito útil para quem gosta de navegar ou fazer explorações nas matas. Aqui na nossa região, para se saber onde fica o Leste basta observar o Sol nascer e deixar seu lado direito voltado para ele. À sua esquerda ficará o Oeste, às suas costas o Sul e a sua frente o Norte. Está vendo aquele outro punhado de estrelas um pouco mais para o Oeste? É uma outra constelação. Chama-se “Escorpião”, por a forma parecida. Essa é mais difícil de ver. Fica muito espalhada. O Cruzeiro do Sul é mais fácil. Deite-se no barco. Continue a olhar para o céu. Vou lhe contar uma história enquanto a gasolina seca:

“ Certa vez um menino saiu com o cão para um passeio no rio. Ao chegar num local como este, desligou o motor e ancorou o barco. Depois, pegou a vara de pescar e jogou o anzol com isca na água. A princípio, ficou sentado, mas depois de algum tempo deitou-se. O silêncio e o calor da tarde, foram suficientes para fazê-lo adormecer. Em seguida sentiu que seu corpo deixava o barco e flutuava em direção às estrelas como se estivesse voando, subindo no espaço. Cada vez mais se distanciava da terra. De repente olhou para baixo e se espantou. Ele se viu deitado no barco com o seu cão, viu as margens do rio, a vegetação de mangue que se espalhava pela região e ficou nervoso. Voltou a olhar para cima, queria ter certeza de que ainda voava. Sim, ainda continuava voando. Tornou a olhar para baixo. Desta vez viu o barco menor do que a palma da mão. As margens do rio e todo o contorno das praias estavam bem definidos. À medida em que demorava a observar um detalhe, os outros já vistos, minutos antes, tornavam-se menores. Chegou um momento que deixou de ver o rio, de se ver, de ver o barco, de ver o cão. Via apenas uma bola azulada. Era a Terra que ele via. E sentiu como se estivesse numa nave espacial em pleno universo onde meteoros, cometas, constelações passavam à sua frente. Ficou deslumbrado e temeroso ao mesmo tempo. Sentiu medo, pavor. Olhou de novo para baixo e, numa velocidade assombrosa começou a descer, a perder altura e viu a Terra, o mapa das Américas, o do Brasil, o rio, as margens, o barco, o cão e ele mesmo. Assim como num filme ele voltou ao tamanho real. Preocupado olhou para todos os lados e para o seu corpo. Em dado momento sentiu a palma da mão ardendo e olhou para ela. Viu, então, os poros crescendo. O sangue correndo dentro das veias. E de novo teve a sensação que deslizava num barco em um rio de águas vermelhas. O barco percorria os canais que eram as veias, as artérias. As vegetações tinham cores avermelhadas, amareladas. As raízes densas, aéreas, cheias de cavernas a se abrir e fechar num movimento contínuo que o deixava atordoado. De repente a água vermelha escura do rio, cedeu lugar a vermelha escarlate. Foi quando ouviu um som forte e ritmado seguido de uma cachoeira de água de diversas cores. Parecia um arco-íris levando-o a outro lugar. Estrelas, planetas, constelações tudo pequeno, tudo reduzido, minúsculo. Tão bonito quanto o que viu minutos antes. Não suportando o que vira, gritou: Tem um céu dentro da gente!
– O que foi isso, Pedro ?
− Não acredito! Você estava dormindo?
− Conte a história.
– Ah! Qualquer dia eu conto.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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