A Faculdade 2 de Julho tem um jornal de distribuição gratuita – são 50 mil exemplares mensais – e já está no seu terceiro número. Chama-se Folha Salvador. Na equipe de reportagem há uma aluna de jornalismo, Euzeni Dantas, que me entrevistou sobre os santos populares Cosme e Damião. Apresento na íntegra o artigo dela com o título em epígrafe.
Setembro é o mês de homenagear os santos gêmeos. Eles são venerados pelos católicos e pelo povo do candomblé. No culto afro eles são chamados de Ibejis (orixás criança), filhos de Xangô e Iansã. No dia 27 de setembro, na Bahia,é costume os devotos enfeitarem suas casas e oferecerem caruru dos sete meninos, acompanhado de vatapá, feijão fradinho,xinxim de galinha e outros quitutes da culinária afra. Não se cortam todos os quiabos em picadinho: sete ficam inteiros, e a pessoa em cujo prato cair um deles rezará uma missa ou terá que oferecer um caruru. Entre as versões sobre a vida desses santos , uma delas conta que os gêmeos atuavam como médicos e se dedicavam aos mais necessitados, não cobrando nada pelos serviços, motivo pelo qual oram chamados “anargyrós”, que significa “ os que não são comprados por dinheiro” – o objetivo principal deles era a conversão dos pagãos à fé cristã. Essa postura chamou a atenção do Imperador Romano Diocleciano, que determinou fossem perseguidos e presos. Por sustentarem a fé cristã, Cosme e Damião acabaram decapitados.
No Brasil a tradição de homenagear os santos gêmeos originou-se a partir do contato entre os ritos católicos e os africanos. Essa tradição se desenvolveu , sobretudo, na aproximação do diálogo entre duas culturas religiosas, a católica branca e a africana.
Esta última tem seus mitos e, dentro deles, há um que encontrou correspondência na tradição católica barroca, que foi a dos Ibejis, os irmãos gêmeos. Então, quando os afro descendentes viram essa devoção a Cosme e Damião, associaram com a mítica que eles tinham realizado e concretizado com os Ibejis gêmeos.
O dia que antecede a festa é de muito trabalho, pois consiste na preparação dos pratos típicos. Durante o cozimento do caruru, o pranto principal, familiares e amigos fazem rodízio para mexer a comida. Todos querem fazer seus pedidos aos santos. De preceito ou não ( quando é de preceito, existe todo um número determinado de pratos a serem servidos e todo um ritual, na tradição do candomblé), o caruru é sempre medido pela quantidade dos quiabos.
Comida pronta, reza a tradição, os santos são os primeiros a serem servidos. Depois o devoto escolhe sete meninos que são reunidos em torno de uma bacia no chão ou em cima da mesa. Além do caruru,os meninos recebem bolos, muitos bombons e pirulitos. Músicas são cantadas em homenagem aos santos gêmeos, enquanto os sete meninos escolhidos aguardam ansiosos pela permissão para começar a comer – tradicionalmente comem de mão. Podemos ter a leitura da valorização da criança nessa festa, pois tudo é preparado pensando-se nelas.
Para muitos baianos, as homenagens a homenagem a Cosme e Damião não são opcionais, já se tornaram uma obrigação. “Todo ano tem que fazer, é uma tradição que já vem da minha avó”, dizem muitos, como Solange Maria Conceição, 50 anos, que já faz o caruru para os santos há 30 anos.
No Ofício das Leituras, na Liturgia das Horas, na tradição católica, sobre esses santos se diz: “De antiqüíssimos documentos consta que seu sepulcro se encontra em Cirro, na Síria, onde foi construída uma basílica em sua honra. Seu culto chegou a Roma e se espalhou por toda a Igreja”.
Também nesse dia lê-se um trecho de um dos Sermões de St° Agostinho, sob o título: A preciosa morte dos mártires comprada a preço da morte de Cristo.
Diz o texto:”Pelos feitos gloriosos dos mártires, com que por toda parte se ilustra a Igreja, provamos com nossos próprios olhos que verdadeiro é o que cantamos: Preciosa é aos olhos do Senhor, a morte de seus santos; preciosa não só a nossos olhos, mas aos olhos daquele por cujo nome se sofreu. Contudo, o preço dessas mortes é a morte de um só. Quantas mortes comprou um só ao morrer? Se não morresse, o grão de trigo não se multiplicaria. (…) Como venceriam os mártires, se neles não vencesse aquele que disse:’Alegrai-vos porque eu venci o mundo’. Ó ditosos os que assim beberam desse cálice: terminaram as dores, receberam as honras”.
*Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, da Academia Mater Salvatoris, Sócio da Associação Nacional de Interpretação do Patrimônio, Sócio Efetivo do Instituto Genealógico