Vladimir Souza Carvalho 27 de novembro de 2008

O trio não apresentava nenhuma uniformidade: a mãe, a filha e um mudo. Todos de idade variada, gente simples, lavradores. Foram conduzidos a minha presença, no Fórum Dr. Martinho Garcez, da comarca de Campo do Brito. Entendi o que desejavam, ante a revelação do fato. A mãe, numa linguagem bem direta, sem cumprimento algum e considerando de forma nenhuma, apontando para a filha, informava que, mal tinha aparecido a primeira regra, a menina se entregara ao mudo, ali, ao lado. O verbo foi esse mesmo. À época, era fazer e casar. Não se prescrevia outro remédio. Contudo, seu Antonio [Luiz da Rocha], o escrivão do Registro Civil, não aceitava os papéis para a celebração do casamento, em face da idade da menina. O mudo, não sei se entendia alguma coisa, permanecia parado, um riso meio disfarçado no canto da boca. A menor, curiosa, sentindo-se o centro dos acontecimentos. A mãe, com toda a razão, queria uma solução para o caso. A filha não podia voltar para a casa sem que a Justiça tomasse uma providência, sobretudo quando o autor estava ali, assumindo o ato, pronto para o casório.

Na monotonia que a comarca andava, sem ações complexas, sem litígios de grande importância, eu, no comando, querendo processo para movimentar e sem os ter, sonhando com um feito complicado para lançar a minha sentença, decidindo ações bestas, vislumbrei uma ótima oportunidade para colocar em plano prático as lições que vinha assimilando do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cuja revista de jurisprudência, recebia, lia e anotava. Era o caso ideal para ver se, fisicamente, a menor estava apta ao casamento e à procriação, independentemente da idade. Evidentemente que nada significaria a realização do casamento com separação de corpos. Quem, na intimidade da casa, com o título de marido e mulher, ia se lembrar da proibição judicial, para esperar a chegada da data permitida? Depois, como explicar ao mudo? A medida estava fora de qualquer cogitação. O ideal era me cercar dos cuidados devidos com o exame determinado, fruto de decisões do Tribunal de Justiça sulista aludido. Os colegiados dos pampas gaúchos sempre ocuparam um espaço de relevo na minha admiração. Antes o de Justiça, nos tempos de juiz de direito, depois o Tribunal Regional Federal da 4a. Região, cujas decisões costumo citar, hoje, com freqüência.

Tomei em termos a revelação da mãe da menor, juntando as certidões de nascimento dos futuros cônjuges. Em despacho, ordenei a realização de um exame, por médico local, o dr. Antonio Carlos Fontes, itabaianense como eu, contemporâneo dos tempos de ginásio, e colega, ainda, dos bancos da Filarmônica Nossa Senhora da Conceição, para verificar, em nível científico, o estado físico da menor. Expliquei à mãe e à filha como seria o exame, a finalidade, etc. e etc., para evitar confusões mais tarde. Tudo bem encaminhado. Com o resultado da perícia, ouviria, enfim, o Promotor da comarca, que, à época, não me recordo exatamente quem era.

Dias depois, chegando ao fórum, me encontrei com o dr. Antonio Carlos Fontes, na calçada da Praça Nossa Senhora da Boa Hora. Perguntei-lhe pela perícia, informando-me que já a tinha realizado. E, dada a intimidade dos tempos de estudante e de banda, lancei o veneno, indagando-lhe se a menor agüentaria o rojão do mudo. O médico, mantendo a voz calma, a cara séria, me respondeu que o mudo é que não agüentaria o rojão da menor. Evidentemente, a assertiva do médico não constou do relatório que me foi encaminhado. Nem poderia.

O pedido de casamento da menor com o mudo encontrou parecer favorável da Promotoria Pública, graças a Deus, porque um opinamento em sentido contrário à pretensão seria negativo para todos, para a mãe da pretendente, que buscava uma solução para não deixar sujo o nome da filha; para a menor, que, queria casar com o bem-amado mudo; para o Judiciário, que, também, se veria impotente em solucionar um problema tão simples para o vulgo. Dificilmente a mãe entenderia e, certamente, ficaria escandalizada com a negativa encontrada, omissão que traria respingos para o Judiciário.
A cerimônia, com as formalidades devidas, foi realizada na manhã de uma quarta-feira, no fórum de Campo do Brito. Um fato na menor me chamou à atenção: o uso de uma peruca. O mudo estava impecável em sua roupa bem engomada. Foi a primeira vez que casei um mudo e me apresso a esclarecer que, no civil, do meu tempo de magistrado estadual, não falávamos em aliança, de forma que, para ser entendido, não precisei fazer o gesto, com o dedo, gesto que um padre, na clássica anedota, recorreu para que o mudo lhe respondesse onde estava a aliança.

É difícil, hoje, vinte e três anos depois da minha saída da comarca de Campo do Brito, saber notícias do casal, se a sociedade conjugal foi, e está sendo, duradoura, quantos filhos tiveram, etc. e etc. Muitos foram os casamentos que realizei, em nome da lei, como rezava o Código Civil, declarando os pretendentes marido e mulher, até mesmo um coletivo, com cento e dez casais, salvo engano, em Monte Alegre. No entanto, o da menor e do mudo ficaram na minha lembrança, pelo inusitado da revelação da mãe da noiva, pelo exame médico realizado, e, por fim, pela peruca que a menor usou na cerimônia. Ah, sim, sim, admito, também pela curiosidade de saber, afinal, se o mudo deu conta do recado.

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(Publicado no Correio de Sergipe)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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