Djanira Silva 23 de outubro de 2008

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Comprou óculos escuros, espelhados. Não usou. O marido disse: Quem usa óculos espelhados é puta. Mandou fazer um vestido branco ele levou na gozação: alegria de mulata é pano branco. Quis cortar o cabelo, ele afirmou: Quem usa cabelo curto é rapariga. Ela se conformou. Todos os dias renunciava a alguma coisa. Tiveram um filha.
A família se revoltava. deixa esse homem. Não respondia. Só ela sabia das ameaças que que ouvia: no dia em que entender de me deixar, mato você e a menina. Ela estremecia só de pensar.
Sentia-se aliviada quando sabia que ele tinha outra mulher, não suportava o contato das mãos ásperas, pesadas e ameaçadoras. Sentido-se rejeitado ele a obrigava a ceder, sob ameaça.
Dominado pela bebida e pelo mau gênio, tornara-se insuportável. Sua presença a incomodava como uma doença.
Adoeceu. Tornou-se ainda mais agressivo fazendo toda sorte de ameaças, onde a menor era matá-la. Avisou : “Se um dia o médico me desenganar, acabo com você e sua filha. Não pense que vou morrer e deixar viúva minha solta por aí. Está avisada”. Medrosa, limitava-se a baixar a cabeça.
Ele guardava na gaveta da mesa de cabeceira uma pistola, um punhal e uma foice sem cabo. “Para cortar pescoço de mulher safada, foice sem cabo é melhor”. O medo aumentava a cada dia. Passou a dormir com os braços cruzados na frente do rosto, como se assim pudesse se defender dos primeiros golpes.
Seu estado de saúde agravou-se. Sob ameaças obrigou-a a levá-lo ao médico. Esteve internado em vários hospitais, fez todos os exames, tomou todos os remédios e não ficou bom. Diagnóstico pior não poderia ter. Precisava de transplante. Um só, não, dois. O fígado e o coração não prestavam mais.
Ela emagreceu, ficou nervosa, chorava e rezava.
– Está me agourando? Pensa que vou morrer? Perca as esperanças
Seu maior medo era de vê-lo desenganado. Lembrava das ameaças constantes.
Encaminhado a um hospital especializado foi atendido depois de longa espera. Uma médica loura, gorda, afobada, sem meias palavras falou o que ela tanto temia:
– Nada mais pode ser feito, transplante não é coisa fácil, principalmente um transplante duplo.
– Então, quer dizer que estou desenganado?
A médica fez um gesto evasivo.
– Não é bem assim, vá para casa e espere.
A mulher apavorou-se. “É hoje, pensou, é hoje que ele vai cumprir as ameaças”.
De volta para casa, ele suava muito. A camisa molhada, os cabelos empapados, um cheiro desagradável se desprendendo do seu corpo. Voltou-se para ela, tocou em seu braço. A mão gelada deu-lhe arrepios. Lembrou-se do pai. “Quando esfriou os pés e as mãos já estava morrendo. Será que os pés também estão frios?”
– O que é que você acha? Será que a médica me desenganou?
Precisava mentir. Enganá-lo.
– Acho nada, esses médicos são muito precipitados. Ela disse para você esperar, não foi?
– Esperar o quê, a morte?
– Não foi isto o que ela quis dizer.
Continuava suando. Respirava com dificuldade. O curto diálogo o deixara cansado como se tivesse subido uma escada. Pendeu a cabeça e ficou assim até chegarem em casa.
Entrou calado, arrastando os pés como se carregasse um grande peso. A mãe e a irmã, que a esperavam, não tiveram coragem de perguntar nada.
Ele foi para o quarto. Deitou-se. Ela murmurou entre dentes para as duas “Está desenganado”.
A mãe estremeceu. A irmã começou a chorar. Elas sabiam de suas ameaças.
Não se deitou com ele nesta noite.
– Está com nojo de mim? – rosnou encontrando forças ainda para arreganhar os beiços, mostrando os dentes como um cão raivoso.
– Não, estou sem sono. Já, já, eu vou.
Chamou a mãe e a irmã que estavam na cozinha. Ficaram de vigília.
Devagar passou pela porta do quarto. Deitado, tremendo, virado para a parede. Ela estranhou pois ele costumava dizer: “Quando eu me virar de costas para a porta, pode apostar que estou morrendo”. Ela mal podia acreditar. Era bom demais para ser verdade. Ficaram as três por ali. Fizeram um cafezinho. Tudo em silêncio. De vez em quando, nas pontas dos pés, passavam pela porta do quarto. Parara de tremer. Nem se mexia.
– Deixa ele descansar, advertiu a mãe. Ela deixou.
Não conseguiram dormir. Ele continuava deitado, imóvel, de costas para a porta.
No dia seguinte, a mãe e a irmã providenciaram tudo, atestado de óbito, caixão, enterro.
No cemitério apareceram algumas amigas inconsoláveis. Os companheiros de trabalho e de cachaça estavam curiosos. Os familiares de olhos secos, em silêncio.
– E a viúva? Não veio? Onde está ela?
Olhavam ao redor procurando a mulher. Estranhavam sua ausência. A mãe viu quando ela saíra logo que o dia amanhecera. Não sabia qual seria seu comportamento ao ver o marido morto. “Para onde teria ido?” Ninguém sabia. Assustada, olhava para os lados procurando-a entre os presentes. Assustou-se com o que viu: Em cima da tumba mais alta que havia por perto estava a filha. Braços cruzados, balançando o pé, em sinal de pouco caso, nariz empinado, maquilada, cabelos cortados, óculos espelhados e um vestido branco com um lascão de lado deixando à mostra as coxas morenas

Obs: Imagem enviada pela autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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