Ah, sim, corrupção no Judiciário, não é novidade. Sempre existiu. Nos tempos de antanho, quando os fatos só circulavam nos quintais interioranos, era com bijuterias e quinquilharias que se amordaçavam os homens da toga preta. A casa, em que o juiz da comarca morava, gratuitamente, cedida pelo chefe político, era uma maneira sutil de corrupção. Depois, ora, depois, o chefe político pediria o troco. Com uma caixa de charutos, ofertada com constância, um falecido chefe político de minha terra se vangloriava de ter no bolso um influente e poderosíssimo desembargador do egrégio Tribunal de Justiça de então. Há o caso que ouvi muito, quando estudante de direito, do jovem bacharel em ciências jurídicas e sociais que, classificado no final da lista dos aprovados para o cargo de juiz de direito, oficiou ao Governador Leandro Maciel se colocando à disposição, caso fosse agraciado com a nomeação. Foi. E pintou o sete, principalmente quando ocupando uma vara na comarca da capital, transformou-a em verdadeiro balcão de casa comercial. Terminou colocado em disponibilidade por força do regime autoritário, dado ao escandaloso proceder. Os nomes? Os que militam no Judiciário, da minha idade, sabem. Deixemos, assim, os mortos dormirem na santa paz da calma dos cemitérios.

De escrivão velho, nas minhas rápidas passagens por uma movimentada comarca do interior, como plantonista, ouvi a artimanha de um magistrado, já aposentado, quando se aproximava a data do seu aniversário natalício. O juiz anunciava a data, com a conversa de que os amigos o aconselhavam a fazer uma festa, mas ele, coitadinho, não tinha condições para tal despesa. Ora, um serventuário, que o ouvia, se encarregava de passar o recado para os políticos a se unirem na homenagem ao ilustre magistrado. No dia do aniversário, a festa, de surpresa, bebida correndo como água em cachoeira, o banquete aguardando o homenageado. E aquele outro, que, nas viagens aos termos da comarca, bem distantes da Capital, numa época em que ao rádio não chegava nenhuma notícia de plagas longínquas, a exigir diária da Prefeitura para ele, prefeito, que já abastecia seu veículo com combustível pago pelo erário municipal?

Mas, todos esses fatos representavam uma minúscula cabeça de prego no corpo do Judiciário, que não chegava a feder, nem a contaminar o seu corpo. Eram acontecimentos miúdos, isolados, muitos passando despercebidos, porque o paletó e a gravata escondiam. Não comprometia o Judiciário, no seu todo. Muitos se situavam longe da capital, não eram colocados em letra de forma, ninguém tinha coragem de formular uma denúncia, Deus livrasse o denunciante de uma perseguição futura, e terminavam passando a mão na cabeça dos portadores daquele pequeno pus que não chegava a conspurcar a saúde do Judiciário. À época, não se falava em virose, nem o câncer era assim tão temido, porque ainda desconhecido em toda a sua eficácia letal. O mais grave que se fazia era convencer o magistrado, portador da ferida, a se aposentar. Como se escrevia muito com o uso do lápis, a borracha se encarregava de apagar tudo. Ou, se com caneta, rasgava-se o papel e a vida na comarca continuava mansa, o que ocorreu, ocorreu, mas não ocorresse mais, a aposentadoria, compulsória, servindo de lição aos mais novos. Depois, o juiz da comarca, quisessem ou não quisessem, era um homem poderoso, a ponto de, um dia qualquer, em uma cidade próxima, incluída na sua jurisdição, encharcado de bebida, ter teimado em manter relações sexuais com uma linda jovem que passava em frente ao bar onde o eminente magistrado deglutia o líquido amarelo. Deu trabalho convencer ao tarado togado para desistir de fazer o que queria. Só se rendeu com o argumento de que a moça era noiva de um oficial de justiça. Essa história, eu ouvi, de quem estava presente a bebedeira.

Todas essas cenas, do passado mais coevo e do presente mais próximo, nada representam diante da enxurrada de fatos que tomam conta dos noticiários, nos dias que se passam. Não é mais uma simples ferida, inofensiva, de nenhuma conseqüência, um tumor que qualquer infecção gera. Agora, o pus toma conta de todo o corpo, a infecção é generalizada, pulmão, rins, fígado e tudo o mais estão impregnados pelo vírus da corrupção, o Judiciário deixa de ser ocupado por magistrados para ser violentado por mercadores de decisões, que, estranhamente, num processo de degradação moral, que nenhum psicólogo ou sociólogo conseguirá explicar, invadem o corpo do juiz, anteriormente sério. Até nos tribunais superiores, de âmbito nacional, o vírus, ou melhor, o câncer se espalha, lançando seus tentáculos tentadores, nos quais o grito da sereia, que antes atanazava Ulisses, agora é transformado em polpudos e volumosos maços de reais. E tome dinheiro dentro da garganta de nomes que, até então, a gente aqui do interior, inocentemente, admirava e citava.

Há de dizer a velhinha do interior, que em meio a seu crochê, ouve os noticiários da noite, que o mundo está perdido. Está mesmo, perdido de falta de vergonha e de punição para todos quantos maculam o nome do Judiciário por força do suborno. Sentença não é mercadoria que se venda por altos preços, nem por presentes fortuitos e salamaleques usuais. É, antes, a vontade soberana do Estado na condição de Julgador. Não é necessário invocar o fato que redundou na famosa e repetida frase de que ainda há juízes em Berlim. A gente precisa, agora, é dizer que ainda há punições no Brasil para os corruptos, de todo e qualquer Poder. Porque, se nada for feito, se tudo correr em águas mansas, deixando o tempo passar para a plebe esquecer, há de chegar o tempo, e não vai demorar muito, em que o advogado há de perguntar, na ante-sala do gabinete do Juiz, qual é a sua tabela de preços. Aí a corrupção não será mais o câncer que já tomou conta de um corpo, mas de toda a estrutura do Judiciário. Não esqueçamos que tão corrupto como o juiz que vende decisões é aquele que não quer punir o colega corrupto.

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Publicado no Correio de Sergipe

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