Padre Beto 25 de outubro de 2008


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Conta uma lenda medieval que um peregrino caminhava com uma cruz em suas costas. A tarefa não era nada fácil, pois a cruz era extremamente pesada. Depois de muito caminhar e não agüentando mais o peso sobre suas costas, o peregrino resolveu cortar um pedaço de sua cruz tornando-a mais curta. Assim, sua trajetória ficou mais leve e o homem pode até mesmo apreciar a paisagem. Ao chegar no final do caminho, o peregrino se defrontou com um problema. Entre ele e seu paraíso almejado encontrava-se um abismo profundo. Sua única alternativa era utilizar a cruz como uma espécie de ponte. Porém, ao colocá-la sobre o abismo o peregrino percebeu que sua cruz não alcançava o outro lado. Justamente o pedaço retirado por ele era o pouco que faltava para que a cruz se tornasse uma passagem para o paraíso.

O homem medieval europeu vivia em um cosmos religioso, ou seja, para tudo existia uma explicação sobrenatural. Como a qualidade de vida era ruim e a existência nada fácil, predominou na Idade Média uma visão negativa do mundo terreno: uma passagem de sofrimentos à caminho do paraíso. Nesta vida curta e sofrida, portanto, não se encontrava a realização da pessoa humana. “Grande miséria é viver na terra”, afirma o autor de “Imitação de Cristo”, um ótimo exemplo desta forte tendência na teologia medieval. O mundo, na verdade, era entendido como um “mar de lágrimas” e o universo terreno consistia no espaço onde o maligno tinha livre atuação. Dentro desta visão teológica surgiram as igrejas românicas que possuíam uma arquitetura semelhante à de uma fortaleza. A casa de Deus deveria ser um castelo fechado e fortificado para proteger o homem do mal que reinava no universo mundano. O ser humano deveria ser fiel a Deus carregando sua cruz para algum dia poder desfrutar do paraíso como recompensa. A imagem do Cristo crucificado passa a estar mais em evidência que o Cristo ressuscitado. Deixar-se levar pelos prazeres do mundo significava sinal de deslealdade com aquele que sofreu pelos homens.

Esta visão dualista do universo, onde mundo sobrenatural e mundo terreno, infinito e finito, alma e corpo estão divididos entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo infelizmente não desapareceu com o início da modernidade. Uma concepção negativa e dualista do universo emerge de tempos em tempos em diferentes épocas e regiões com forte intensidade e poder de persuasão. Basta olharmos um pouco ao nosso redor para percebermos que o europeu medieval não está muito longe de muitos brasileiros do século 21. Acredita-se ainda que a vida consiste em carregar uma cruz e o pós-morte na recompensa pelos sofrimentos. Muitas igrejas evangélicas travam constantemente uma luta contra o maligno (aliás, nunca se viu tantos demônios em igrejas como na atualidade) e a sexta-feira da paixão, com a encenação do sofrimento do Cristo na Cruz, atrai muito mais pessoas do que a celebração da Luz no Sábado Santo. Os programas na TV que exploram o sofrimento humano possuem grande audiência, as notícias ruins são as mais rapidamente divulgadas, e não raramente surpreendemos as pessoas em uma competição de quem sofre mais, quem possui a doença mais grave ou o problema mais angustiante.

Sem dúvida alguma, ninguém pode negar o sofrimento humano e muito menos desejo defender aqui uma postura ingênua e alienante com um discurso sobre “pensamento positivo”. Mas, não consigo comungar com uma visão negativa do mundo e da vida. Como homem religioso, mas não medieval, acredito que Deus é a origem do universo. Este Ser transcendente está longe de ser uma força sádica, mas sim um Amor profundo que dá sentido à vida. O ser humano, por sua vez, tem sua origem neste Ser transcendente, por isso é possuidor de uma força divina ilimitada. “Lembre-se de que és tão bom como o que de melhor tiveres feito na vida” (Billy Wilder). Eu acredito que o mal é a falta do bem e todos nós estamos em uma caminhada de aprendizagem e de iluminação. Isso significa eliminar o mal e não assumi-lo como uma cruz a ser carregada. Para isso é necessário entender que nós somos os responsáveis pelo mal e o demônio não passa de um “bode expiatório”. Os seres humanos são responsáveis por este universo e cabe a eles preencherem a lacuna escura, o mal, com o bem. A vida não deve se constituir em um “mar de lágrimas”, mas sim em uma rica caminhada de aprendizagem e a missão de todos os homens e mulheres é fazer deste mundo um verdadeiro paraíso, no qual todos possam ter o prazer de viver. “Seja você quem for: você é aquele ou aquela para quem a terra é sólida e líquida, você é aquele ou aquela para quem sol e lua penduram-se no céu, pois ninguém mais que você é o presente e o passado, ninguém mais que você é a imortalidade” (Walt Whitman).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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