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Apesar de que a sociedade moderna evita pensar sobre a morte e disfarça o medo que esta provoca, a memória dos falecidos continua sendo muito celebrada pelas culturas populares da América Latina, a partir das tradições indígenas e negras. Em muitas paróquias católicas, a lista das pessoas falecidas é lida no começo das missas. No México e nos Andes, os dias 01 e 02 de novembro são datas de grandes comemorações festivas nos cemitérios e nas casas. As pessoas integram o mistério da morte na trama da vida. Até pelo modo como falam da partida. Uma lenda africana conta que Deus encarregou o camaleão de levar aos humanos a notícia de que poderíamos ser imortais e o segredo para o conseguirmos. Ao mesmo tempo, deu ao lagarto a missão de nos avisar que seríamos mortais. O camaleão atrasou-se e o povo só recebeu a comunicação do lagarto. Assim, por causa de um atraso, sofremos a morte. No Brasil, a religião dos orixás acredita que a bênção de Deus se manifesta por uma vida longa e fecunda. É normal alguém morrer velho, em sua casa, acompanhado por filhos e netos. Não se deve morrer jovem, em meio a uma vida não resolvida. Menos ainda se pode morrer de acidente ou violência.

As culturas indígenas também insistem na unidade e integração entre o mundo dos vivos e a influência dos mortos e antepassados no clã. Os vivos convivem com os seus mortos. No universo, há um equilíbrio de vida e morte. A morte é uma invenção sábia da vida para que ela possa permitir a pessoa emergir no universal. De acordo com essa sabedoria, a morte faz parte da vida. A gente começa a morrer no dia em que nasce. Dados da ciência concordam com isso. Desde a concepção, o programa genético de cada pessoa (o AND- ARN) já determinaria o seu tempo de vida, desde que não haja acidente de percurso e a pessoa não nasça num país onde, como dizia Guimarães Rosa, “viver é sempre muito perigoso”.

O mundo de hoje rompeu com essa sabedoria. Educa-nos a não falar no assunto, nem nos preparar para a morte. Isso é péssimo, porque quando a vida é desumanizada, a morte também perde o seu sentido. É dessacralizada e com ela não aprendemos mais nada .
Decidi ser monge quando tinha dezoito anos. Nos primeiros dias, um dos costumes que mais me espantou foi o dos monges recrearem, passeando sobre os túmulos dos falecidos. Conversavam sobre os assuntos do dia a dia, pisando em lajes antigas, ou mais novas, escritas em latim, indicando que ali jaziam irmãos que viveram e faleceram na busca da intimidade de Deus. Perguntei o porquê daquele costume. O mestre me respondeu: “Vive bem quem, cada dia, convive com a morte. Em Deus, todos nós estamos vivos”. Não compreendi. Mas, no mosteiro, aprendi a ver a morte não como tragédia incompreensível e sim como dor de parto que gera vida nova. Vi muitos monges morrerem. Quando a hora da partida chega para um irmão, a comunidade faz dobrar o sino maior do Mosteiro e se reúne junto ao leito do moribundo. Todos cantam novamente o cântico da consagração que aquele irmão entoou no dia em que se tornou monge e, assim, entregam a Deus aquele monge que parte.

Conheci um monge que estava moribundo. Quando a comunidade fez esta oração ao pé do seu leito e o entregou a Deus, ele disse as seguintes palavras: “Benvinda sejas, irmã morte. Dá-me mais um dia para eu me converter e me reconciliar com quem não amei bastante. Depois, vem me buscar”.

Entre os monges antigos, era comum esta convivência com a morte, não por um desprezo à vida, mas, ao contrário por uma integração entre vida e morte. Um dos monges que me impressionaram neste particular foi Dom Plácido de Oliveira, compositor e autor de vários hinos que, durante anos, cantamos. Ele soube pelo médico que estava com câncer de fígado e em estado final. Um dia, despertou de um momento de coma. Ouviu o toque do sino. Olhou ao redor e viu a comunidade reunida, renovando sua consagração. Compreendeu o que aquele rito significava. Deixou os irmãos acabarem o cântico e fez sinal de que queria falar ao abade. Sussurrou: “Já que vou morrer, quero comer uma maçã assada e beber um cálice de vinho”. Comeu, bebeu e entregou o espírito a Deus. Parece uma das histórias da morte de São Francisco.

Independentemente da sua tradição religiosa, a memória dos seus mortos refará em sua vida “a aliança das gerações”, capaz de garantir a paz e a sobrevivência harmoniosa da humanidade.

*Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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