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Neste domingo, a comemoração dos 186 anos da independência política do Brasil não somente nos trouxe de volta desfiles militares, como mais uma edição do “grito dos excluídos”, a 14ª, que, em todas as capitais e muitas cidades do interior, fez ressoar as reivindicações dos setores mais pobres da população brasileira, para que a independência política se possa, enfim completar por uma verdadeira justiça social e econômica: “A vida em primeiro lugar e com participação popular!”.

O descrédito de uma autoridade do poder judiciário ao favorecer milionários, surpreendidos em flagrante corrupção e ladroeira, assim como a impotência dos camponeses e índios em fazer valer seus direitos coletivos mostram que não basta mais garantir que haja democracia – esta foi a luta dos anos 80 – mas que seja uma democracia de qualidade e verdade. A mera existência de instituições democráticas não garante uma democracia de qualidade. Mesmo o sistema eleitoral, aparentemente, neutro e competente para fazer com que prevaleça a vontade do povo, precisa ser aprimorado para garantir que haja proporcionalidade justa dos diversos estados, pluralismo cultural na representação política (mais índios, negros, mulheres nas câmaras e nos governos), assim como ampla participação popular nas escolhas dos candidatos e candidatas eleitos.

Em toda a América Latina, por anos e anos, os povos faziam eleições formalmente livres, mas fosse qual fosse o resultado, o poder verdadeiro e efetivo continuava nas mãos de uma elite social e econômica que não cedia um palmo além dos seus interesses de classe. Até aqui, o sistema chamado democrático não possibilitou uma maior justiça social, nem a inclusão dos grupos mais pobres na cidadania e no espaço da vida nacional. Em outros países latino-americanos, se fala em uma revolução cultural, feita a partir da educação popular, da valorização das culturas indígenas e da igualdade do homem e da mulher, assim como de um maior cuidado com a natureza. Estes são os elementos através dos quais podemos verdadeiramente testar até onde vai a nossa independência real. Somente um país que dá prioridade à educação pode se dizer independente.

As pessoas famintas de justiça e de transformação social se deram conta de que nenhuma transformação profunda se dará no mundo, sem ser por uma radicalização da democracia. Isso só pode ser possível através de uma mudança na consciência da população. A UNESCO reconheceu que, em quatro anos, a Venezuela venceu completamente o analfabetismo. O Equador espera cumprir esta meta ainda no final de 2009. Atualmente, a Bolívia e o Paraguai se empenham em uma campanha nacional pelo analfabetismo zero. Nestes países, grupos indígenas e movimentos populares conseguiram se inserir no processo social e político, cumprem as regras democráticas vigentes, mas, ao mesmo tempo, a partir de suas culturas próprias. Isso tem provocado mudanças, sempre votadas pela maioria, mas rejeitadas pelas elites que sempre dominaram a Política. Por exemplo, em dezembro, os bolivianos vão votar se todo o país concorda que o máximo de terra que um latifundista pode possuir é de 10 mil hectares. Atualmente, os que detêm até 300 mil chamam o presidente de “índio sujo” e denunciam que a democracia está ameaçada. Os 90% da população que não tem onde cair viva garante que o processo de mudanças é irreversível, ao mesmo tempo, feito sem violências. No Brasil, tais discussões ainda são proibidas.

Em muitas cidades, as pessoas vêem se aproximar as eleições municipais e buscam o candidato menos pior, ou pensam em votar em alguém, apenas para evitar a vitória de um outro. No processo democrático, isso é válido, mas revela a fragilidade do atual sistema democrático. O projeto de reforma política que o poder executivo propõe, pelo que foi publicado nos jornais, não parece transformar verdadeiramente esta realidade. As comunidades populares e grupos sociais pedem o direito de participação no processo político.

Zigmunt Bauman recorda que a força de uma construção depende de como está resistindo o seu ponto mais frágil. Para saber se um viaduto está bem construído, é importante ver a resistência dos seus pontos mais delicados. Uma sociedade também é assim. Sua sanidade depende de como vivem seus cidadãos mais pobres e marginalizados. Um país que não respeita o direito dos índios a suas terras ancestrais e não tem orgulho de que os povos originais possam viver suas culturas próprias nem mereceria o nome de país, já que este supõe a reunião de diversas raças e culturas em um Estado soberano. Estas exigências se somam à superação do patriarcalismo e à adesão ao cuidado ecológico, sem o qual não se garante nem a sobrevivência do planeta, quanto mais do país.

As pessoas que crêem vêem nestes sinais de mudança uma indicação de que o Espírito de Deus atua nas estruturas do mundo e nas pessoas. Mesmo em meio às ambigüidades de todo processo político, quem olha o mundo e a vida sob o enfoque espiritual enxerga esta gestação de uma terra nova. No século XI, Ibn Arabi, místico islâmico, dizia: ‘Assim é a pessoa de coração universal: leva em seu íntimo a semente de todos os seres e abarca toda a verdade’.” [1].

[1] – Cf. 3a parte, capítulo 13, pág 12.

*Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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