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A credibilidade das Igrejas e de toda religião está cada vez mais ligada ao compromisso destas contribuírem com a justiça e a paz no mundo. Na América Latina, a relação entre espiritualidade ecumênica e opção pela vida e libertação dos empobrecidos foi proclamada oficialmente pela 2ª Conferência geral dos bispos católicos latino-americanos, reunida em Medellín, Colômbia em 1968. Neste 26 de agosto, completaram-se 40 anos em que o papa Paulo VI abriu a conferência e indicou o rumo que ela seguiria. Até o dia 06 de setembro, a conferência de Medellín aprofundou várias propostas para um cristianismo de rosto latino-americano e caribenho. Durante esta semana, em vários lugares do continente, cristãos e estudiosos do tema se perguntam que herança permanece da 2ª Conferência geral do episcopado latino-americano e que relação existe entre a Igreja Católica da América Latina que, em 1968, foi capaz de fazer Medellín e os bispos que, no ano passado, realizaram a 5ª conferência do episcopado em Aparecida. Mais do que tudo, uma grande parte da humanidade quer saber se pode contar com as forças vivas da Igreja Católica e de sua hierarquia – como contou a partir de Medellín, até meados da década de 70 – para organizar juntos um mundo mais irmão e mais justo.

Medellín foi um acontecimento de certa forma surpreendente e pioneiro. A sua preparação não previa de modo algum os frutos que, no final, nos deixou. É certo que, em 1968, o clima de abertura e diálogo com a humanidade que o papa João XXIII tinha iniciado com a humanidade ainda não tinha sido totalmente cerceado. Também o ambiente de liberdade e criatividade, provocado pelo Concilio Vaticano II, ainda influenciava bispos, padres e comunidades cristãs. Entretanto, a visão da maior parte dos bispos não tinha sido transformada. Quem foi a Medellín e, antes, participou do Congresso Eucarístico em Bogotá pode confirmar isso.

A conjuntura no continente era difícil e conflitiva. Vários dos nossos países, como o Brasil, estavam imersos em uma cruel ditadura militar. No ano anterior a Medellín (1967), na Colômbia, os militares assassinaram o sacerdote revolucionário Camilo Torres e, na Bolívia, a CIA matou o comandante Che Guevara. Em todo o continente, cresciam os grupos cristãos, convencidos de que o desafio maior para os nossos povos não era o mero desenvolvimento e sim a libertação dos povos oprimidos. O desenvolvimento proposto acabava sempre sem justiça. O Evangelho apresenta o reino de Deus não como o desenvolvimento do sistema do mundo e sim como ruptura e libertação de tudo o que oprime o ser humano. Entretanto, na maioria dos países, só um ou outro bispo, como no Brasil, Dom Hélder Câmara e alguns outros denunciavam as torturas e enfrentavam diretamente a ira dos militares no governo. A maioria dos bispos e padres preferia calar. E o papa pregava que os cristãos devem buscar uma evolução das coisas e não revolução. Medellín começou sob este clima. Só à medida que as discussões se aprofundaram, o ambiente foi se abrindo e os bispos trataram das graves questões do continente, da forma mais aberta e lúcida que se poderia imaginar. Certamente, vários bispos votaram sem se dar conta das conseqüências de tudo o que tinham afirmado e assinado.

A conferência de Medellín foi a primeira vez em que uma grande assembléia eclesial se interessava por um tema que não era só interno à vida da Igreja. O título era “A Igreja no mundo em transformação”, mas a perspectiva era projetar uma visão integral do ser humano, compreendido a partir de sua dimensão social e da sua vocação para a libertação. De fato, a conferência conseguiu realmente falar ao mundo. Produziu 16 documentos de conclusão e todos foram escritos no método de partir da realidade (Ver), confrontar esta situação levantada com a Palavra de Deus e com o projeto divino para o mundo (Julgar), concluindo por sugerir pistas de ação e de atividades para transformar a realidade (Agir). Os primeiros documentos versavam sobre Justiça, Paz, Família e não sobre temas eclesiásticos.

Medellín foi uma conferência pioneira e propôs transformações na identidade da fé e da pertença eclesial. Entretanto, não ousou mexer nas estruturas de sempre. O resultado disso é que esta estrutura se encarregou de neutralizar e apagar a mensagem profética da conferência. Tanto que hoje somos obrigados a nos perguntar que herança ficou de Medellín na Igreja de Aparecida.

O milagre divino é que, apesar de todas as dificuldades da Igreja e do mundo, Medellín deixou um espírito que não morreu. Embora restrito a minorias proféticas, o apelo dos bispos na conferência ressoa até hoje: “Que se apresente cada vez mais nítido, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação do ser humano por inteiro e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a)

*Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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