Saulo Marden 13 de setembro de 2008

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Há muitos anos, conheci um relojoeiro cuja dedicação pelos relógios de parede o destacava dos demais profissionais do ramo e todos na cidade o conheciam por “Meyer relojoeiro”, a oficina era em sua própria casa, contribuindo assim para tornar o horário de trabalho interminável, e consertos difíceis eram passatempo; ao descobrir o defeito, sentia a alma renovada, e quando, algumas vezes, o corpo, a vista, indicavam que era chegado o momento de parar, resistia; a idéia de não ter o que fazer o impulsionava mais e mais ao trabalho, e driblando o cansaço ficava a limpar, a polir as ferramentas até que as badaladas da meia noite nos mais variados tons indicasse a hora de se recolher e num desses serões, após a melodia da zero hora, notou um relógio parado e ficou surpreso, pois durante o dia o deixara funcionando, agora os ponteiros estavam superpostos no número doze, e cansado, sem coragem àquela hora, entregou-se ao repouso, mas a mente não o deixou dormir e, no estado de torpor, quando não se distingue sonho de realidade, pensou: “interessante, não é a primeira vez que conserto este relógio e sempre os ponteiros ficam superpostos o ano passado aconteceu a mesma coisa a engrenagem estava perfeita os ponteiros não se tocavam portanto não deviam parar e ouviu uma voz não sabe que os ponteiros também têm os mesmos problemas que vocês humanos que precisamos de tempo para conversar se entender e amar… não… não acredito no que ouvi estou cansado enlouquecido e de novo a voz acredite no que ouviu aqui quem lhe fala é o ponteiro dos segundos o responsável pela vida dos outros dois. E ele perguntou: “podem os ponteiros falar pensar… “Sim… também agir a hora e o minuto formam um casal e estão sujeitos ao dia a dia e aos desencontros”.
Meyer levantou-se e ainda no estado de torpor comentou para si mesmo em voz alta: “Preciso descansar, hoje trabalhei demais, já estou atribuindo sentimentos aos ponteiros”.
No dia seguinte, veio-lhe a idéia de mudar o mecanismo dos relógios, criar engrenagens, fazer os ponteiros pararem juntos e que com um simples toque em um botão voltassem a funcionar com a hora e os minutos atualizados e assim, discutiriam com mais calma os problemas que os afligem: “Meu Deus estou mesmo louco estava dormindo ou acordado terá sido sonho o dia que vivo agora, é real ou imaginário de onde veio a voz que quer ensinar a trabalhar a quem não admite sugestão” Essas perguntas tornaram-se fixas obsessivas e, dia após dia, pensava em encontrar uma solução fabricando peças, iniciando a montagem e, no fim de algumas semanas, concluiu o trabalho e radiante, pendurou o relógio na parede: “Hoje vocês terão tempo para conversar e espero que daqui em diante quando estiverem juntos se encontrem mas ao voltarem a funcionar não atrasem indiquem a hora e os minutos certos… com precisão”
Durante toda a semana o funcionamento foi perfeito: nenhum minuto ou mesmo segundo foi prejudicado e ele, entusiasmado com o feito, esqueceu que era chegado o dia da devolução daquela máquina conforme prometido ao dono, e a angústia voltou a lhe perturbar com a idéia de encontrar uma alternativa para não devolvê-lo e, viu que a solução seria alegar que o relógio não tinha mais conserto; que era melhor vendê-lo, comprar outro; aquele apenas se prestava para a retirada de algumas peças e a decisão caberia ao dono: vender ou ficar para relíquia, e no dia da entrega, estava nervoso, a concentração falha, o trabalho difícil; quando o dono perguntou por quanto ele ficaria, a emoção dobrou, pois aquele relógio lhe revelara que até os mecanismos de aço precisam ter descanso e deste dia em diante, todas as vezes que olhava para os ponteiros lembravam-lhe pessoas, e para tanto, deveria dar-lhes conforto por cumprirem a jornada de trabalho, e duas vezes por dia permitia-lhes a chance de estarem juntos e numa delas, o tempo era bem maior; o relógio não mais se atrasou nem se quebrou, mesmo após a morte de Meyer quando passou a pertencer a outras pessoas comprometidas em dar continuidade à operação.

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Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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