“Cidade ponte, Monumento Nacional, visionária, semente de frutos prósperos, berço privilegiado da inteligência, solo fértil de onde emergiram as genialidades como Augusto Teixeira de Freitas, considerado o maior jurisconsulto das Américas; Ana Néri, cognominada de mãe dos brasileiros; Maria Quitéria, heroína da Independência; cidade onde prosperaram significativos movimentos culturais e religiosos, a exemplo da Irmandade da Boa Morte. Sem olvidar que das suas entranhas rompeu, em 25 de junho de 1822, a revolução precursora da Independência, consubstanciada nos atos heróicos que resultaram na vitória alcançada em 2 de Julho de 1823” – é dessa forma, que o professor Josué Melo, Diretor Geral da Faculdade 2 de Julho, faz a apresentação do livro “Imagística de Cachoeira – Ilá Deleci “, que é uma publicação daquela Faculdade e que será lançado na Câmara de Vereadores no próximo dia 14/08/08, às 10:30, semana de celebrações da Festa da Boa Morte (dias 13,14 e 15 de agosto).

Para entender Cachoeira, é importante mergulhar no seu passado. Lá foi o principal centro de redistribuição de escravos na região e permitiu a realimentação com a África – dessa forma, garantiu que as tradições africanas fossem mantidas.

Conhecer Cachoeira é descobrir o que ela representa em termos de significado para a história da Bahia. Claro que há muito por refazer nessa cidade, porem, cada vez mais, ela se torna um canteiro de obras. De um lado, no aspecto físico, na restauração dos seus monumentos, igrejas, sobrados, praças. De outro lado, nos valores que permeiam a sua história – são aspectos a se recuperar.

Ela foi a porta para o sertão , além de ser o acesso na direção das Minas Gerais – tudo passava por lá. Ela diversificou a sua economia, passando do açúcar e indo ao alento do fumo. Também foi líder na guerra da Independência – seu posicionamento tendente ao liberalismo foi marcante. Há traços visíveis na sua história que apontam para a busca do federalismo; seus representantes estavam entre os Alfaiates e, sobretudo, nas lutas abolicionistas. Tudo isso se concentra no 25 de Junho, sua data magna. Por isso mesmo, ela tão bem merece o epíteto de “A Heróica”.

O trabalho que agora é publicado, reproduz textos já publicados na imprensa, onde recorda aspectos da cidade, dos materiais aos imateriais. Seu título quer falar mais do que as imagens já conhecidas. Quer mostrar nuances que pedem uma empatia para serem lidas. “Imagem” é uma palavra por demais conhecida, tão conhecida que já se torna dessacralizada. “Imagística” é uma palavra pede reflexão, convida a uma leitura interiorizada da história da cidade. A capa desse livro é uma homenagem a um desses ícones que tão bem representam essa cultura : Ilá Deleci, no candomblé – Jorlanda Souza, de batismo. Ela é uma rainha negra, que, com sua simplicidade, não deixa de ser uma autoridade. É irmã da Boa Morte e Mãe do Terreiro Ilê Kodedê – e, na palavra de Gil Abelha, que pintou o quadro ilustrativo da capa desse livro, ele a chama de “filha de Ogum”. Ela própria se apresenta no livro e fala de sua trajetória de vida que a faz acumular diversas experiências religiosas. Narra a sua relação, nada feliz, com sua madrasta, pela qual foi ” feita ” no candomblé. “Mas – conta ela – desgostei-me do candomblé e passei a ser evangélica. Mas adoeci. Minha tia Lira disse que aborreci os orixás. E através dela, tudo foi refeito. Daí é que comecei a contar a ” feitura ” de sete anos”.

Muitos dos textos salientam a importância da Irmandade da Boa Morte, que hoje integra, de modo singular, o calendário turístico-religioso do Recôncavo. Suas origens continuam incertas. Mas, de qualquer forma , tudo aponta, em termos de paradigma, para a Barroquinha. O que o professor Cid Teixeira, há anos me contou, parece cada vez mais se confirmar.É que o Recôncavo, até o início do século XX, estava cheio de Irmandades da Boa Morte. Recentemente, os meus alunos da Iniciação Científica da UNEB, descobriram no Arquivo Público, um texto onde se menciona a existência de uma Irmandade da Boa Morte em Santo Amaro. Ora, na igreja do Amparo daquela cidade, há um altar dedicado a essa devoção. É lógica a ligação entre imagem e culto. A imagem não é colocada apenas para ornar um altar, mas reflete uma devoção com o seu respectivo culto. Também em Maragojipe, descobri uma litogravura de 1879 com a inscrição:”Nossa Senhora da Boa Morte, que se venera na cidade de Maragojipe”. Também lá descobri uma gravura, certamente do início do século XX, com a inscrição em italiano:”Sepolcro di Maria”. Na igreja matriz de S. Bartolomeu, naquela cidade, há uma imagem de Nossa Senhora da Boa Morte. Em cada 15 de agosto, ela é exposta, reverenciada pelos fiéis – essa imagem tem até sapatos de prata usados naquela ocasião.

Mas não podemos nos esquecer que Cachoeira conserva raízes, é uma proto – história, que nos dá base para a dupla pertença sincrética. Será que sob o manto da Boa Morte, as primeiras integrantes esconderam seus cultos ancestrais, sobretudo aqueles relacionados com os mortos, naturalmente coibidos pela sociedade dominante daquela ocasião?

Há uma ancestralidade milenar que a devoção a Maria encerra e que se atualiza no culto da Boa Morte. Nesse sentido, concordo com o professor Ubiratan de Castro, que num seminário em Cachoeira, afirmou que “essa Irmandade só podia vingar aqui em Cachoeira”. Foi nessa cultura que a dupla pertença – o sincretismo – foi gestada. A partir daí, a negociação foi lançada. O escravizado percebeu que sem a religião do branco era impossível não negociar com os santos. A nova situação na qual o africano escravizado estava envolvido, implicava num conflito. Ora, todo conflito implica em aspectos de negociação. E o desfecho não é a vitória de um sobre o outro. Mas, ao contrário,é o de repor uma situação. Na sociedade atual, vemos, como resultado dessa negociação histórica, as Cotas para afro-descendentes, a criação das Secretarias da Reparação Racial. A luta não é para destruir, mas para ter reconhecidos os direitos. Cachoeira foi um cenário “natural”, isto é, teve um contexto histórico que permitiu a negociação, gerando, portanto, uma dupla pertença.

A cidade mantém outras Irmandades importantes, como a da Conceição do Monte. Por trás de muitas igrejas há, às vezes, um relato mítico que ultrapassa o controle da história e, em alguns casos, se confunde com a estória. A igreja da Conceição do Monte preenche esse recorte. Essa igreja está com a reforma quase concluída. A restauração trouxe surpresas. Quando as paredes da nave começaram a ser reformadas, descobriu-se pinturas de grande valor e que estão sendo restauradas com grande maestria – a contra-capa do livro quer privilegiar essa descoberta.

*Professor Adjunto de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho, da Cairu.
(Lançamento do livro “Imagística de Cachoeira – Ilá Deleci”, dia14/08 às 10:30 na Câmara de Vereadores de Cachoeira. Depois estará à venda na Livraria LDM, da Direita da Piedade).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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