Primeiro, foi em Nossa Senhora da Glória. O advogado, educadamente, pediu licença para acender o cachimbo, em plena audiência. Resolvi, em respeito ao vício, interromper os trabalhos, para permití-lo satisfazer o terrível vício lá fora, na calçada do Fórum, a fim de não infestar a pequena sala com a fumaça de seu cachimbo em atividade. E olhe que, à época, eu ainda fumava.

Depois, em audiência, em Campo do Brito, o advogado, aliás, o mesmo, repentinamente, abre um pacote e começa a mastigar um bolachão. E, ainda explica ter saído cedo demais de Aracaju, de maneira que, ao chegar à comarca, passou na padaria de seu Juca Pindaíba e comprou os bolachões (acredito que tenho ganho). Eu, formal e solene, parecendo um poste sentado na cabeceira da mesa, vendo tudo aquilo de boca fechada, em respeito agora à fome, ouvindo o mastigar do bolachão se misturar as desculpas.

Parecia uma perseguição à solenidade que tentava impor as minhas audiências, a liturgia do cargo sendo massacrada pela informalidade de um cachimbo e do mastigar de bolachão, que, aliás, saindo da padaria de seu Juca Pindaíba deveria ser bastante gostoso, substituindo, com muita eficiência, o café matinal que deixou de ser tomado.

Essas cenas, hoje, anos e anos depois, soam com um tempero suave e, até, causam saudade. Quem dera só ter tratado com advogados assim, fumadores de cachimbo e, famintos, de manhã cedo, devoradores de bolachão! Mas, a nobre e vibrante classe dos advogados está constituída de profissionais de todo naipe, valorosos defensores do direito que, cada procuração recebida, parece descarregar em sua cabeça. A sala de audiência é um repositório adequado para captar muita experiência de vida ante os fatos que, por lá, ocorrem e são discutidos.

Uma vez, em Campo do Brito, em um litígio movido por uma jovem contra um fazendeiro da redondeza macambirense, objetivando a uma indenização por vivência em comum sem o rótulo do casamento, antecedida por namoro e culminada com o seu defloramento (em uma época em que o fato pesava, e, como pesava!), depois de uma certa discussão que não consegui conter, a jovem demandante, por sinal, pelo que me lembro, muito bonita, tomou a palavra para contestar o advogado do demandado, explicando que, ainda ontem, à noite, em Aracaju, os três jantaram juntos. Os três, entenda-se, ela, o demandado e o doutor advogado do demandado, porque, apesar de todo o litígio que os autos revelavam, os dois, autora e réu, permaneciam mantendo a mesma convivência marital. Verdade.

Outra vez, em ação dessa mesma natureza, também na Comarca de Campo do Brito, e, em processo que tramitava em Macambira, uma jovem buscava uma indenização por ter sido perdido a virgindade com o demandado. Uma contestação danada de grande abafou os autos na negativa do fato. No momento da primeira audiência, a tentativa de conciliação tomou conta. Na condução dos fatos, esclareci ao réu que a maneira de encerrar o litígio era uma conciliação, abrindo a porta para o casamento dos dois, como solução. O réu pensou para um lado, pesou os fatos, a indenização perseguida era muito alta, e, depois de alguma hesitação, aceitou a proposta do casamento, que recebia, também, o sinal verde da demandante. Afinal, apesar de toda a controvérsia de afirmativa e negativa, havia um liame entre os dois. Ali mesmo, os papéis foram arrumados e, precedido do acorde do Ministério Público, celebrei o casamento. A demandante, contudo, emocionada, quase coloca tudo a perder, ao não abrir a boca para responder o sim no momento da pergunta. Suspendi a celebração, mandei esvaziar a sala. Trouxeram a jovem água gelada, e reiniciado o ato, a demandante, enfim, para meu alívio, respondeu sim a minha pergunta, e, de lá, saiu casada, como queria, e, como, para tanto, se entregara ao demandado. Que alívio!

Bons tempos de juiz de direito do interior do Estado, lidando com uma população, até certo ponto, inocente, a ponto de uma senhora casa ter ido ao Fórum consultar o magistrado, como consultado fui, se, deixando a casa, perderia algum direito, por ter sido informada por uma vizinha que sim, a convivência conjugal tornando-se insuportável, dada às cachaçadas do marido e conseqüentes pancadas desferidas no cônjuge-consulente, para, poucos meses depois, retornar, humildemente, agora para indagar o que eu achava dela retornar a morar com o marido, que mandava lhe chamar, os filhos querendo que ela voltasse, e eu, não sei se com sabedoria ou com burrice, respondi que ela era quem sabia, porque afinal a esposa era ela, e, portanto, era quem ia cozinhar para o marido e viver com ele, oferecer-lhe o refrigério do corpo e agüentar as pancadas quando o companheiro chegasse embriagado em casa. Haveria outra resposta?
Mas, o fato que mais me marcou foi receber, em determinada comarca do interior, quando lá me encontrava como substituto, a visita de uma senhora que queria falar comigo a sós, na sala de audiência, pedindo, por tudo quanto fosse sagrado, a retirada da promotora de lá. Eu, paciente, a lhe mostrar que não haveria segredo que o Ministério Público não pudesse conhecer, e que, evidentemente, só existindo no Fórum aquela sala de audiência, não poderia fazer o que me pedia. Depois de muita careca e drama, o que me deixou até certo ponto irritado, a desconhecida, olhando par um lado e para outro, a maior dificuldade do mundo em falar, teatralmente, revelou que era filha do padre da paróquia, que, por seu turno, tinha duas semanas de morto. Solenemente, me levantei, apertei-lhe a mão, dando-lhe pêsames, pedindo desculpas por não ficado para o sepultamento, porque o terno que usava, no dia, não se revelava adequado para o enterro.
Ah., as lições de vida na sala de audiências…

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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