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Nos próximos dias 13, 14 e 15 de agosto, a cidade de Cachoeira estará celebrando a quase bicentenária festa da Boa Morte. Nessa ocasião estarei recebendo o título de cidadão cachoeirano, na Câmara de Vereadores às 10:30. Simultaneamente, será lançado o livro “Imagística de Cachoeira-Ilá Deleci”. Trata-se de uma publicação que é somatório de vários artigos que escrevi nessa coluna, sobre a referida cidade, sua característica cultural, e, sobretudo, sobre a Boa Morte. Na capa há uma homenagem à Ilá Deleci, membro daquela Irmandade e Ialorixá do terreiro Ilê Kodedê. É uma pintura do artista Gil Abelha que quis homenagear essa ilustre cachoeirana e a chama, na dedicatória que lhe faz, de ” Filha de Ogum”.

Desde que cheguei à Bahia, Cachoeira exerceu uma forte atração em mim, exatamente por representar um centro de interesse histórico e cultural marcante no Recôncavo Baiano.
Cada vez que venho a essa cidade, aprendo, descubro e vejo que ela representa um potencial em termos de importância para a história da Bahia e do Brasil. Claro que há muito por refazer nessa cidade, porem, cada vez mais, ela se torna um canteiro de obras. De um lado, no aspecto da restauração dos seus monumentos, igrejas, sobrados, praças. De outro lado, nos valores que permeiam a sua história – são valores a se recuperar..

A cidade mantém outras Irmandades importantes, como a da Conceição do Monte. Por trás de muitas igrejas há, às vezes, um relato mítico que ultrapassa o controle da história e, em alguns casos, se confunde com a estória. A igreja da Conceição do Monte preenche esse recorte. Essa igreja está com a reforma quase concluída. A restauração trouxe surpresas. Quando as paredes da nave começaram a ser reformadas, foram descobertas pinturas de grande valor do século XVIII e que estão sendo restauradas com grande maestria.

Em Belém de Cachoeira, na igreja-seminário do Santo Frei Galvão, foi realizado um seminário com a idéia central de pensar e velar o patrimônio que circunda essa cidade, despertando nos seus habitantes esse interesse e até suscitando um orgulho por serem detentores de tantas riquezas. Isso está registrado nesse livro.

Também recordo uma visita que fiz à Gaiaku Luiza, a grande Mãe Jêje da região. Lembro-me que antes de ter acesso ao recinto, a Ekede Preta “limpou” o meu corpo e dos demais acompanhantes com as folhas sagradas, para “tirar a energia negativa de quem vinha da rua” e, assim, nos preparar para entrar naquele lugar sagrado.
E comento no livro vários aspectos das festas da cidade. Em “Louvores a Nossa senhora da Ajuda”, retomo a importância daquele templo que é a pedra-fundamental da cidade. Soma-se à festa um profano imbricado no sagrado. Os dois elementos se polarizam e se fundem. Muitos viajantes, no século XIX, como Tollenare e o Príncipe Maximiliano, espantaram-se com essas representações “quase carnavalescas”.
Recordo a festa dos Santos Cosme e Damião com a missa na Ajuda. Naquele ano 2007, os juízes foram Samir Adson e Adson Samir – o trocadilho dos nomes já mostra a origem gêmea deles. São sobrinhos do professor Adilsom Gomes. Aqui houve um terreno favorável ao desenvolvimento dessa devoção, revestida de uma crença ancestral. Por isso, na Bahia, não se pode deixar de participar do caruru dos gêmeos.

Retomo alguns elementos do livro publicado em agosto de 2007: “Das Memórias de Filhinha às Litogravuras de Maragojipe”, que teve como prefaciadora a ilustre Presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do qual sou membro, Consuelo Pondé de Sena. Lá o centro das atenções gravita em torna desse ícone sagrado que já está completando seus 105 vigorosos anos. É Filhinha, nascida sob a proteção de Maria, por isso se chama Narcisa Cândida da Conceição. O livro é fruto de uma “escuta sensível”. Ela é uma memória viva da cidade, da Boa Morte, da cultura cachoeirana. Sua reminiscência pessoal, não é fechada em si, mas é uma narração viva da vocação da cidade, com suas tradições vivenciadas em múltiplos momentos, sobretudo nela, no testemunho de vida que ela dá.

Será que sob o manto da Boa Morte, as primeiras integrantes esconderam seus cultos ancestrais, sobretudo aqueles relacionados com os mortos, naturalmente coibidos pela sociedade dominante daquela ocasião? Essa Irmandade constitui-se num desafio à pesquisa dos estudiosos que têm nela um manancial, um acúmulo de tradições ainda por serem desveladas e desvendadas.

Vejo Salvador como um grande santuário que abriga muitas tradições religiosas: desde o Senhor do Bonfim até os candomblés mais “clássicos”. Mas não podemos nos esquecer que Cachoeira conserva raízes, uma proto – história, que nos dá base para a dupla pertença sincrética. Tudo isso se conserva em Cachoeira, e as irmãs da Boa Morte são as detentoras dessa verdade-crença.

O livro contém uma apresentação da própria Ilá Deleci. E é ela quem fala de si : “Em Cachoeira organizei o meu terreiro, construí uma capela dedicada a Santo Antônio, e registrei tudo em 1982. Sou conhecida como Ilá Deleci, ou simplesmente Deleci, mas no batismo tenho o nome de Jorlanda. No ‘Roncó’ a gente é como freira, isto é, tem que trocar de nome. É o orixá que me deu esse nome novo. Quando eu morrer, Papai do Céu vai, lá em cima, me chamar pelos dois nomes. A abertura do meu Terreiro foi uma verdadeira romaria. Recebi o ‘Ibá’, a herança de minha mãe-de-santo”.

*Professor Adjunto de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho, da Cairu. Membro do IGHB, da Academia Mater Salvatoris, da Associação Nacional de Interpretação do Patrimônio e do Instituto Genealógico.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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