Tonho Oliveira não é mais gente. Vestiu-se de morto, enfiou-se num caixão e se escondeu em uma sepultura no Cemitério das Almas, de Itabaiana. Agora é apenas um telefone que não atende mais, um sofá que reclama sua ausência, mãos que não seguram um livro, dedos que não passam páginas, olhos que não se abrem para o texto, boca que não faz nenhum comentário. Trancou-se com tanta segurança que de lá, da sepultura, não sai mais, o ouvido fechado a qualquer pedido, indiferente as lágrimas vertidas cá fora.

Hão de dizer, e, com absoluta razão, que a morte não lhe era novidade. É verdade. Já carregava o seu gosto na boca. Viu dentro de casa, derrubando, uma por uma, duas pessoas do seu mundo feliz. Primeiro, apagou a cor dos lábios de Maria, que deixaram de enrubescer “em seus matizes”. E como foi triste a primeira manhã sem Maria em casa, no vazio que ficou, confessaria, e no primeiro Natal sem Maria, escreveria um poema, que, saudoso, divulgou. Depois, quando a dor cicatrizava, veio outra pancada, ainda maior, muito mais, sem comparação, na notícia de Betânia passando mal quando já estava morta, Tonho chegando de Brasília, o corpo alquebrado, curvado, a derrota estampada na face, ante o cadáver da filha, a perguntar aos deuses do universo o porquê de não ter sido ele, já vivido, a ser lembrado pela senhora morte, em lugar da filha, pupila dos seus olhos, com muito caminho a percorrer.

Pergunta besta, própria de pai que perdia a filha, disposto ao sacrifício se opção lhe fosse dada. Ficou sem resposta. Por certo, os deuses estavam ocupados com as suas tarefas para ouvirem o clamor indignado de um simples vivente, pai que chorava o desaparecimento precoce da filha, fato, afinal, tão comum. Talvez o silêncio fosse uma forma de dizer que havia para ele muita terra a palmilhar, caminhos outros a percorrer, prazeres e sofrimentos novos para saborear e enfrentar. O eterno dilema da rosa que perfuma e do espinho que fere, síntese da vida. Os deuses enxergam a quilômetros e quilômetros de distância a frente. A gente é que não sabe. Então, o corpo alquebrado e curvado se viu na obrigação de voltar ao normal. A dor da derrota se concentrou só no coração. Tonho era forte demais para continuar se abatendo. De tudo ficou a lição: não faria mais planos, vivendo apenas o dia de hoje. O exemplo de Betânia o marcava.

Foi viver, solitário em Itabaiana, a mãe para cuidar, Ezequiel Noronha para lhe contar, todas as manhãs, diária e sagradamente, as novidades da terrinha, Álvaro Fonseca de Oliveira a rememorar, nas noites frias, nos bancos da Praça da Igreja, as ocorrências do passado, num parto de memórias, ambos a se deleitarem com os fatos escondidos nas décadas que ficavam lá para trás, Itabaiana como centro do mundo, a rede da casa da mãe, a leitura de bons livros, quando permitiam, Tonho, de passo leve, a fazer da Praça o seu ponto predileto, cercado daqueles que queriam ouvir uma conversa agradável, o dom da palavra, a condução certa da matéria com a maestria de quem, na cabeça, dominava a arte da exposição, as gerações mais novas que se curvavam aos seus conhecimentos, a certeza de que sempre tinha platéia para ouvi-lo, admiradores e amigos para suprimir a solidão que o espaço deixado por Maria e Betânia fomentou.

Dona Dosse (ou Doce? Falta-me a certeza da grafia correta, lembrando que vem de Eudocia), não é eterna, apesar dos noventa e sete anos na cacunda. Um dia, das complicações de uma queda em sua avançada idade, faltando pouco para comemorar um século de vida, se vai. Quem disse que Tonho permaneceria sozinho? O amor, fruto de uma maturidade que a idade, o sofrimento, a conveniência e a solidão ditavam, não mais aquele que lhe levou até a presença de Maria, nos anos cinqüenta, abre as portas para um novo casamento. Sabe que não é mais o jovem de antes, encantado com o enrubescer dos lábios de Maria. Marinheiro de longo percurso, acordado para a realidade de um mundo novo, abdica, para a esposa, o vestido de noiva e a cerimônia religiosa. Deixa de ser viúvo. Há, de forma permanente, mulher em sua vida, nestes tempos tão práticos. Tonho, a esta altura, sofria o assédio de cinco candidatas, segundo ouvi de Álvaro, que alardeava os nomes. Não invento, nem me arrisco. O futuro, agora, na maturidade dos anos, se escrevia com as letras de Lícia, a escolhida

Há, sim, um novo mundo, quase um admirável mundo novo, para usar um título de romance, ele que lia tanto, e gostava de citações [consultar, a respeito, História breve (e um tanto cifrada) de uma Paixão – Vários escritos, de sua autoria], em sua nova vida. Aliança no dedo, a presença ao seu lado de um amigo que se fez grande e influente aos seus olhos, mais do que um filho, sem o parentesco do sangue, Luiz Carlos Andrade, a feira dos sábados, pela manhã, o café no mercado, o almoço misturado às altas discussões políticas, Tonho sem arredar mão da sua condição de comunista histórico, arrebatado, agora se arriando na defesa do PT, a voz alta em defesa de seu pensamento, as idas ao Shopping, as leituras na Escariz, a memória a ditar a data de nascimento e de morte das pessoas queridas, a produção de artigos, a consulta de escritores acerca de textos de livros, Tonho vivendo ao lado de Lícia, em viagens anuais a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro, até que o destino mau, como no poema de Bandeira, fez dele o que quis. E aí foi a descida lenta, mas vertiginosa, a luta desesperada com a morte que se avizinhava, o ceifar do entusiasmo e dos movimentos, a fraqueza que chegava, o atleta de ontem, da Associação Olímpica de Itabaiana, que dependia de terceiros para dar dois passos, a pressão que cai, a morte que chega e domina seu corpo.

Tonho morreu? Morreu nada. Conversa tola. O homem era esperto, experiente, calejado de maus momentos, perseguido e preso por sua condição de comunista (crime ideológico já se afigura um absurdo, a prisão cheira sempre a injustiça), por duas vezes, comerciante de longos anos, ia muito se deixar levar pela cantada da morte. Esta que fosse rolar em outro lugar, tanta gente aí dando sopa. Tonho escapou da morte. Absurdo, não? Mas é verdade. O cadáver, no caixão aberto, no velatório ao lado do Cemitério das Almas de Itabaiana, na noite do dia 10 para a tarde do dia 11, ambos de agosto corrente, era apenas uma maneira inusitada de enganar a morte, a fim de que ela rumasse seus passos sinistros para bem longe. Tonho Oliveira não morreu. Apenas encantou-se, para usar o verbo de Guimarães Rosa. Ou dobrou a esquina, como afirmou Fernando Pessoa. Desapareceu, então, completo eu. E desde então, para todos nós, amigos de velhas datas, que com ele convivemos, conhecendo, de perto, suas virtudes e defeitos, passou a ser apenas um ponto de saudade.

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Publicado no Correio de Sergipe

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