Djanira Silva 21 de agosto de 2008

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Olhou-se no espelho. Decidido, vestiu roupa de homem. Jogou fora as folgadas e coloridas. Não conformado queimou-as.
Cansara de ser palhaço.Lavou a cara para remover as tintas que lhe aumentavam os olhos e a boca, avermelhavam-lhe o nariz redondo colocando em seu rosto uma alegria patética.Olhou-se novamente no espelho. As tintas permaneciam firmes. Odiou a alegria paralisada, inexpressiva. A roupa de homem não fazia dele um homem. Aceitara a profissão até quando percebeu que não sabia rir. Fazia rir as pessoas porque lhe pagavam.
Sentou-se no chão sob a lona do circo. O trapézio à sua frente balançava empurrado pelo vento. Precisava se libertar da carga que herdara do avô, do pai a carga de ser palhaço. Queria ser um homem comum. Por ser palhaço até sua dor era engraçada. Ninguém acreditava no que dizia. Riam das palavras, dos gestos, dos propósitos.
Conversou com um amigo. “Você tem um dom que pouca gente tem, fazer o mundo rir”. “Um dom, alguém lhe perguntara se queria aquele dom?” “Mas, se quer mudar, é simples, lave a cara, remova as tintas, troque de roupa.” “Mas já troquei, esta roupa é de homem”. “Nem havia notado”, disse o amigo.
Voltou ao espelho. A mesma cara, o sorriso do pai,do avô, o seu sorriso. O palhaço.
Foi à igreja. Rezou por muito tempo. Rezou como homem. Sentia-se mais homem do que palhaço, mas o padre só viu a cara mascarada pelas tintas. “Vá lavar este rosto, aqui não é lugar de palhaço”.
Voltou para o circo. Deitou-se. Dormiu. Sonhou com o trapézio balançando à sua frente. Viu-se nas roupas douradas do trapezista. Passou a mão no rosto e sentiu ainda a crosta seca da pintura. “Palhaço!!!” Gritavam. Acordou.
A roupa de homem o tornava ainda mais ridículo. As pessoas riam na rua, na igreja, nos becos, nas calçadas, comentavam “um homem com cara de palhaço.”
E se pulasse do trapézio sem rede, sem proteção? Tentou. “Está louco?” Gritou irritado o dono do circo. “Desce daí, não é lugar de palhaço”.
Voltou para o seu quarto. Esfregou a cara com tanta raiva que sangrou.
À sua frente nem havia porta, só a lona velha do circo. Chovia. Caminhou por muito tempo na chuva com a cara para cima, esperando um milagre.
Caminhou por todas as ruas, subiu todas as ladeiras, parou nas esquinas, se abrigou embaixo das árvores, rasgou as roupas molhadas. Sentiu a água da chuva nos braços, nas mãos, descendo-lhe pela espinha causando-lhe arrepios nos corpo nu. Passou mais um vez as mãos no rosto. A pintura ainda estava lá. Tremeu de frio por muito tempo. Afinal, se acalmou.
Quando amanheceu, as pessoas paravam para ver pendurado na árvore, o corpo inerte de um homem nu com cara de palhaço.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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