Cada vez mais cresce o número de pessoas de várias tradições espirituais que concordam: as religiões são chamadas a abolir as paredes que dividem o sagrado e o profano, para que todo o universo seja considerado um templo do Espírito. Na Bíblia, Deus se deixou ver por Moisés em um espinheiro no deserto. E, naquele contexto, a primeira palavra de Deus foi: “Tira as sandálias dos pés, porque a terra em que pisas é sagrada” (Ex 3, 5).
Neste 15 de agosto de 2008, delegações de muitos governos do mundo, mas também simples representantes da sociedade civil, se reuniram em Assunção, para participar das cerimônias de posse de Fernando Lugo, como novo presidente do Paraguai. Talvez, por ele ter sido bispo e ligado à Teologia da Libertação, pessoas como Dom Tomás Balduino, Leonardo Boff, Márcia Miranda e eu, fomos convidados, para representar os movimentos populares do campo e levarmos aos irmãos do Paraguai a solidariedade e a comunhão das comunidades cristãs do nosso país.
Conheci Fernando Lugo, há alguns anos, em um encontro de pastoral. Ele ainda era bispo de uma das dioceses mais pobres da América Latina. Na 5ª feira, à noite, assim que chegamos a Assunção, fomos a um encontro dele com os movimentos populares. Ele mesmo nos recebeu na escada do palco e nos abraçou, agradecendo a nossa presença. Ao vê-lo falar tão diretamente com a multidão, me lembrei que há dois anos, em um encontro internacional em Cuba, já decidido a deixar o ministério episcopal para se candidatar, ele declarou: “A partir de agora, minha grande catedral será meu país”. Naquele momento, uma jornalista lhe perguntou se não era ambicioso demais querer transformar um país inteiro em uma catedral. Ele explicou que não se tratava de nenhum projeto de sacralização do mundo: “Com esta metáfora, eu quis dizer que, durante anos, como bispo, partilhei a vida dos mais pobres e procurei ajudar as pessoas, ensinando e trabalhando em uma catedral. Agora, me coloco à disposição de todos os cidadãos do meu país, para, a partir da Política, construir uma nação justa e fraterna para todos os cidadãos do Paraguai”.
Estas palavras mostram uma fé e espiritualidade inspiradas no evangelho de Jesus. Não são de Deus os que dizem “Senhor, Senhor”, mas os que fazem a vontade do Pai” (Mt 7, 21), ou seja, a justiça e a vida para todos. Neste contexto, Fernando Lugo renuncia ao ministério de pastor da Igreja, não por alguma crise pessoal de vocação ou por problemas particulares. Ele deixa de ser bispo para restituir dignidade à Política como ciência e arte do bem comum. E se propõe a ser guardião da justiça e testemunha do projeto divino para todos.
O próprio fato de ter sido eleito, assim como seu gesto e suas palavras mostram que a Teologia da Libertação está viva e muito frutuosa.
No Brasil e em outros países, a função política parece desacreditada. Por causa dos erros de numerosos políticos, muitas pessoas olham a Política como algo sujo. É urgente testemunhar que a atividade política é uma vocação e um caminho belo e generoso de serviço ao povo e de compromisso com as melhores causas da humanidade.
Na prática, Fernando Lugo sabe que há dificuldades para que sua proposta seja realizada. Para ser eleito presidente do Paraguai, no dia 20 de abril, ele teve de fazer coalizões e alianças que nós do Brasil conhecemos bem. Nem sempre estes conchavos primam pela coerência de idéias, nem deixam ao eleito grande margem de liberdade. E o poder executivo depende muito dos poderes legislativo e judiciário.
Mesmo com as limitações, decorrentes das velhas estruturas políticas do país e da fragilidade das pessoas, já é ótimo ter um presidente que, honestamente e com sinceridade, se propõe a governar pensando na maioria dos seus conterrâneos, até hoje excluídos da vida social e política. Agora, no Paraguai, os índios, camponeses e empobrecidos da periferia urbana sabem que podem contar com um representante seu no primeiro cargo do governo. Mesmo como presidente, ele continua calçando uma sandália indígena e vestindo uma roupa de simples camponês. Esperamos que o poder não lhe suba à cabeça e ele não se torne apenas mais um dócil gerente das multinacionais no país e do interesse dos bancos internacionais.
Certamente, dentro de poucos dias, a imprensa vai desencadear uma guerra sem trégua a Fernando Lugo, como faz com todos os presidentes progressistas e populares do continente. Quem não governa para os ricos é chamado ditador e caudilho, mesmo se submete a eleições democráticas e respeita as oposições do país. No Paraguai, esta imprensa não poderá ridicularizar o presidente porque ele fala errado ou porque usa imagens no estilo dos peões da indústria. Ele é filósofo e teólogo. Lá, a imprensa terá de disfarçar mais o seu racismo e o seu ódio a qualquer pessoa que queira transformar as velhas instituições do país, para que não sirvam apenas aos privilegiados de sempre. No Paraguai ainda não existe a revista Veja e parece que governo e grupos econômicos dos Estados Unidos ainda não acharam necessário pagar reportagens mentirosas para destruir governantes locais. Para nós, simples mortais, fica a alegria da confirmação de todas as melhores esperanças e a convocação para a retomada permanente da construção de um mundo de paz e amor.
* Monge beneditino, teólogo e escritor.