Quando menino, em Itabaiana, ouvi muita conversa, que me impressionava, sobre o final do mundo. A gente não tinha noção da vida e, ainda, se via obrigado a escutar papos dessa natureza. Em tudo, o destaque para o fato de que o mundo já tinha sido destruído por água, numa referência ao episódio bíblico de Noé. Agora, seria a vez do fogo. Labaredas queimariam os quatro cantos da terra, por ordem de Deus. A gente ouvia, calado, imaginando a fogueira imensa trucidando tudo, o calor igual ao que o inferno produzia, o medo plantado na mente de cada um, tal a convicção que norteava a pessoa que transmitia a notícia, como se tivesse ouvido tal assertiva de uma rádio do Céu. Contudo, o medo não tirava o apetite, nem o sono de ninguém. A vida prosseguia mansa, até que o assunto voltava a ser abordado.

Essas conversaram se perdem e se encerram nos meandros longínquos dos tempos da infância. Outros fatos surgiram e, a partir de certo momento, não ouvi mais nada a respeito do final do mundo. Talvez porque as pessoas que portavam tal verdade estivessem ocupadas a repassá-las para os mais jovens, como forma de manter viva a sinistra profecia. Não sei se à meninada mais nova, depois, foi contada tal coisa.

Hoje, ao ler o artigo de João Hélio de Almeida, intitulado de Breve análise sobre as doutrinas e profecias do Padre Felismino, ps. 145-153, da última e bem elaborada Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, me vêm à tona a dúvida se, afinal, as conversas de cinqüenta anos atrás não seriam, ainda, um reflexo das pregações do padre Felismino, cuja figura, aliás, já merecera abordagem do mesmo João Hélio de Almeida em CARIRA (Aracaju, Gráfica J. Andrade, 2a. edição, 2000, ps. 113-114 e 144-145).

O padre Felismino da Costa Fontes é itabaianense, com toda a certeza. Ou nascido na própria vila, ou nos arredores, incluindo na expressão os povoados que faziam parte da vila serrana, no século dezenove, como Campo do Brito. Seu irmão, o tenente José da Costa Fontes, por exemplo, foi aluno de Gramática Latina de Tobias Barreto, na vila de Itabaiana, segundo Sebrão, sobrinho, em TOBIAS BARRETO, O DESCONHECIDO (Imprensa Oficial, Aracaju, 1941, p. 89).

Ao mencionar o nome do irmão e de seu precoce óbito, na sina trágica de alguns dos alunos de Tobias Barreto, em Itabaiana, Sebrão, sobrinho, sobre o padre Felismino, esclarece: ” … ordenou-se presbítero da ordem de San Pedro, virtuosíssimo e muito inteligente, foi o primeiro vigário da sergipana paróquia de San-Paulo [hoje Frei Paulo]. Em sua vida sacerdotal, sem mácula, pouco a pouco insidiosa moléstia mental atacou-lhe o cérebro e, sôbe essa ação, sem que logo o percebessem seus superiores, criou visionária religião entre os matutos das Matas de Itabaiana, que foi a chamada seita dos Caipiras. Foi internado no Hospício San-João de Deus, na Baía [Salvador], onde concluiu tristemente sua existência em dias do ano de 1892, sem que o acreditem os caipiras, que, sebastiânicamente, ainda lhe esperam o retorno redentor “.

Outro pesquisador, que lhe faz é Carvalho Déda, em BREFAIAS E BURUNDANGAS DO FOLCLORE SERGIPANO (Edições Catavento, Instituto Trancredo Neves, 2a. edição, 2001, p. 218), ao conceituar, em nível sergipano, o termo caipiras: “- Os adeptos do Padre Felismino, antigo Vigário da Freguesia de Frei Paulo, Sergipe, o qual, tendo enlouquecido, começou a pregar sobre o fim do mundo, iniciando uma seita baseada no Apocalipse e na “Missão Abreviada”.

Pois bem. Algumas das idéias do Padre Felismino da Costa Fontes foram salvas pelo padre [e poeta] Raul Borges Bonfim, não evidenciando, em nenhum dos seus conceitos coligidos, nada que se relacione ao final do mundo. Contudo, são fragmentos colhidos oitenta e tantos anos depois da morte do seu criador, recolhidos oralmente, passados de geração a geração, sem que, ninguém que viu o padre pregar estivesse vivo na década de setenta do século passado, quando o padre Raul foi vigário de Carira, vizinho da Freguesia de Frei Paulo. A circunstância tempo opera para a deturpação e alteração das idéias originais do primeiro vigário da freguesia de Frei Paulo, mas oferece uma visão, ainda que incompleta, de seus sermões.

Levando em conta o ano de sua morte, 1892, em cotejo com o fato de seu irmão ter sido aluno de Tobias Barreto, em Itabaiana, o padre Felismino da Costa Fontes não chegou a avançada idade, como a tradição defende (ver, a propósito, o artigo referido, p. 151), bem como as suas idéias, acerca do final do mundo, podem ter sido anteriores às pregações de Antonio Conselheiro, ou podem ter ocorrido em épocas idênticas, simultaneamente, bem como se incluírem no ciclo das profecias, iniciadas na Idade Média.

As conversas, ouvidas na minha infância, sobre o final do mundo, ressurgem, agora, fortes, fazendo-me reportar aos anos cinqüenta, a povoar a Rua do Sol, nos diálogos com pessoas mais velhas, aproveitando a pálida luz dos postes da empresa elétrica de Zeca Mesquita. O final do mundo, pelo uso do fogo, faria parte das pregações, profecias e alucinações do padre Felismino? As guerras que o século XX abrigou e as que o século XXI hospeda, o perigo, sempre diário, de um conflito mundial no qual as armas nucleares podem ser utilizadas, não seria, por seu turno, a concretização daquilo que o padre Felismino, em seus momentos de lucidez [ou não], pregou? A verdade sobre o futuro do planeta Terra teria sido anunciada no final do século XIX, em Frei Paulo? E, não custa, ainda, indagar, quem será o novo Noé, a construir uma espaçonave, para, nas alturas, ficar imune ao fogo? Não me arrisco a responder.

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Obs:Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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