Eu estava no Shopping Recife, numa loja, a receber duas camisas com o escudo o Sport bordado em cada uma, quando a máquina, gingando para um lado e para outro, fazia, em um tecido esticado, um outro escudo do mesmo time. Lá estava o leão amarelo, em meio às listas horizontais em preto e vermelho, ganhando corpo ao movimentar da máquina. Enquanto esperava minha encomenda, fixei bem a cena em plena atividade. E, lá me vem, dos fundos mais distantes da infância, a figura de dona Zefinha de Mestre Paulino, em sua máquina de costura, o pano preso em algum objeto que não sei o nome, a ser movido para lá e para cá, na realização de um bordado colorido, o azul e o vermelho se destacando, a captar a atenção dos meus olhos de menino de menos de sete anos de idade. Tudo bem concatenado, sem lugar para erros, as linhas fazendo o bordado, guiado o pano pelas mãos hábeis da bordadeira.

Dona Zefinha era vizinha de vovó Brasília. Vizinha e prima. As mães, Maria e Júlia Angélica, respectivamente, eram irmãs, parentesco que, à época, não sabia. Já a alcancei em certa idade, solteira, morando sozinha num casarão na Rua do Sol, que ia de uma rua a outra, o corredor imenso, quartos ao lado. Nesta casa, hospedou-se Juarez Távora, no início do Governo Getúlio Vargas, depois de vitoriosa a Revolução que derrubara Washington Luiz. Mestre Paulino, então intendente, mandou forrar o primeiro quarto, para nele Juarez Távora poder dormir. Dizem que, no almoço, uma outra filha do intendente, Dejanira, teria lhe oferecido doce de goiaba como se fosse uma novidade para o ilustre cearense.

Quando tinha oportunidade, e, como menino não encontra barreiras, era ver dona Zefinha bordando, a porta religiosamente aberta – porque ninguém sabia o que era invasão de domicílio para realização de qualquer furto -, e lá ia, intrometido, corredor a dentro, presenciar o grande fato de o pano ser conduzido, com muita agilidade, sob o pretexto de perguntar se tinha carretel vazio para brincar de guerra. Se dona Zefinha gostava ou não de ver quebrada sua privacidade com um menino curioso, parado, de seu lado, a apreciar sua arte de bordadeira, nunca soube, nem nunca vi nenhuma palavra dura na minha presença, nem queixa aos meus pais. E, aliás, acredito que, se não gostasse, teria dado sinal, ao qual a gente entenderia perfeitamente, porque tinha bom humor e sabia brincar, como brincou, com vovó Brasília, na campanha eleitoral de 1954, ao pregar, num vidro, que separava as duas casas, voltado para a casa de vovó, justamente na cozinha, os retratos de Leandro Maciel e de Serapião Antonio de Góis, candidatos ao Governo do Estado e a Prefeitura de Itabaiana, respectivamente. Ora, os candidatos eram da UDN e vovó votava no PSD. Brincadeiras entre primas que a gente, menino, não se metia.

A figura de dona Zefinha me veio, então, à tona, a máquina fazendo o que ela passava tanto tempo a realizar, a máquina substituindo o homem. Mas, não foi só o bordado. A lembrança ia além, para o seu quintal, onde uma parreira se destacava, a primeira que vi na vida, os cachos de uvas surgindo aqui e ali em meio à folhagem verde, a vontade imensa de mastigar uma uva daquela, que dona Zefinha, pacientemente, respondia, ante meu pedido, que estavam verdes, sem nunca ter me conseguido convencer de sua verdade. Ah!, as uvas, cujos cachos, depois, nas feiras, me chamariam tanto à atenção, embora, na minha cabeça, a assertiva de estarem verdes permanecessem presentes.

Dona Zefinha, um dia, vendeu o fundo da casa. Talvez fosse conveniente se livrar de parte do casarão. Depois, vendeu a casa e foi embora de Itabaiana, viver com as sobrinhas em Aracaju, Brasília ou no Rio de Janeiro. A casa foi derrubada, juntamente com o quarto, com forro bonito, onde Juarez Távora chegou a dormir. De quando em quando, aparecia, mas, a esta altura, eu já não me lembrava dos seus bordados, nem dos cachos de uvas verdes que brilhavam no seu quintal, perto da cisterna enorme que também aguçava minha curiosidade de menino. Anos e anos depois, voltou, talvez sentindo que sua presença não cabia mais na casa das sobrinhas, quem sabe lá, uma velha sem utilidade, passou algum tempo na casa de um sobrinho, e, de lá, melancolicamente, foi para um asilo em Ribeirópolis, onde faleceu.

No meu livro A REPÚBLICA VELHA EM ITABAIANA, há uma foto do mastro do São João, na rua das Flores, nas primeiras décadas do século vinte, onde ela, menina, de cabeços encaracolados, aparece. Sempre me emociono ao ver a foto, a menina que mais tarde seria uma senhora de idade, como eu a conheci, no início da década de cinqüenta, ali, na foto, tão despreocupada, em meio a outras pessoas, pacientemente a esperar que seu Teixeirinha retratasse o acontecimento.

Se uma conversa puxa outra, é no mesmo livro que o retrato de seu pai, Paulino Aristides de Menezes, aparece, na condição de primeiro intendente de Itabaiana depois da Revolução de 30. Ganhou o termo de mestre, que era utilizado antes do nome – Mestre Paulino – mais por ter sido alfaiate, com alfaiataria no mesmo lugar da casa que, com outra estrutura, mui freqüentei para ver dona Zefinha bordando, – de que por ter sido maestro da Filarmônica Nossa Senhora da Conceição. Nas fotos do começo do século XX, a alfaiataria tinha letreiro na parede da frente.

O retrato de mestre Paulino não seria nenhuma novidade, porque também aparece, em outra foto, tirada por seu Teixeirinha, a frente da Filarmônica Nossa Senhora da Conceição, divulgada em SANTAS ALMAS DE ITABAIANA GRANDE (1973) e reproduzida em A REPÚBLICA VELHA EM ITABAIANA (2000). Mas, o seu retrato só me chegou as mãos por oferta de dona Zefinha, na década de setenta. Eu não sonhava em fazer nenhuma pesquisa sobre o passado de Itabaiana, e, ela, visionária talvez, esteve na casa de meus pais, e entregou a foto a minha mãe. Toma, Maria, dê a Vladi de presente. Eu conservei a foto por quase trinta anos, sem saber o que dela fazia, até que, em A REPÚBLICA VELHA EM ITABAIANA, pude divulgá-la.

No fundo, parece que dona Zefinha desconfiava de alguma coisa. Se não tive direito a uma só uva, dos tantos cachos que enfileiravam a parreira de seu quintal, me foi reservada a foto do pai, que, no momento certo, foi incluída em livro sobre a história de Itabaiana. O gesto da oferta do retrato não pode ser visto isoladamente. Estava no contexto do menino que admirava suas peripécias no bordado feito pela máquina e, um dia, perdendo a cerimônia, pediu uma uva. Não a teve. Depois, muito depois, ganhou, a foto aludida, que, inegavelmente, foi mais produtiva, como se este, afinal, tivesse sido o seu prêmio. Nas peripécias do destino, a gente não se mete.

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(*) Publicado no Correio de Sergipe, de 02 de agosto de 2.008.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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