Há certos gestos e objetos que são marcados pelo fenômeno da passagem: o primeiro talão de cheque, o primeiro carro, o computador, a abertura de uma conta bancária, etc. Mas eles não têm jamais função puramente simbólica. Têm também uma utilidade real.
O rito dos calouros pode ser considerado como uma autocelebração do grupo constituído. Nesse sentido, ele é um espelho em que se desvela o imaginário do grupo, através de funções instituídas, de comportamentos adotados e valores que contam “vantagem”.
O recurso à tradição, sobretudo nos períodos de tensão, torna-se um meio de reforçar as distâncias e as barreiras sociais. O recurso ao ritual tem também uma função de estabilização e de confirmação. Sob uma aparência momentaneamente descoordenada, ele permite uma mais rápida e melhor interiorização das normas do grupo pelos novos, reforça a coesão do grupo dos antigos, acelera o interconhecimento dos indivíduos e reitera a adesão (mesmo se ela se exprimir sob uma forma inversa) à ordem pedagógica e aos valores da instituição escolar. Ele permite àquele que aceita a regra do jogo religar-se a uma história contínua e tornar-se depositário de uma memória que será incumbido de transmitir. À cultura técnica, ao savoir-faire ensinado pela instituição, se sobrepõe um savoir-être, que é um comportamento emocional e afetivo produzido e controlado pelo grupo.
É revelador que essa iniciação (a do calouro) seja chamada de “batismo”. Ela é muitas vezes solene ou menos séria e comporta uma forte carga emotiva.
Nem a presença dos elementos religiosos num ritual com acentos tão profanos pode parecer uma contradição. Mas eles são característicos dessa “inculturação religiosa” que ainda impregna a nossa sociedade modelada pelo cristianismo. E, acima de tudo, eles introduzem a noção da consagração e de pertença a um grupo em formação.
O mundo religioso parece ter sido uma constante nesses rituais de calouros. Denise Berger, apoiando-se num conjunto de textos e estampas dos séculos XV ao XVIII, descreve vários itens de entronização de estudantes nas universidades européias, que se assemelham aos nossos ritos de calouros (Depositio). Ela estabelece claramente o simbolismo cristão do rito, que, sob a forma inversa da caricatura, apela a modelos religiosos. Há uma ressurreição celebrada pelo Batismo.
A relação estabelecida entre a mácula anterior e o renascimento ligado ao sacramento, a dimensão simbólica, assim como a terminologia empregada, reenviam claramente ao batismo religioso. Ele, o batismo, é um nascimento espiritual que apaga o pecado, confere a graça e abre a vida eterna ao cristão. Desse novo nascimento decorre, naturalmente, a ligação espiritual, que é diferente da relação de família, apesar de ela ser o modelo usado aqui; na verdade, a instituição do padrinho-madrinha foi sempre algo a mais que uma relação de família.
Através de uma violência teatralizada e representada como tal, a “calourada” marca uma passagem e esboça uma fronteira. Ela opera uma mudança de estado instrumentalizado por uma série de operações, um conjunto construído de atos sucessivos, que, primeiramente, separa o “noviço” do seu meio de origem, depois o remodela segundo outros critérios culturais, para, em seguida, agregar esse ser transformado a um novo grupo de afiliação, incluindo-o num parentesco escolar.
Hoje, aponta-se como um dos ritos de passagem do mundo contemporâneo, o chamado inserimento, isto é, a entrada de uma criança na escola maternal, na creche, ainda muito cedo, sofrendo todas as conseqüências de um mundo novo que ela enfrenta, participando, desse modo, de um tipo de iniciação.
Quando se olha a situação de transição em que a criança passa do universo maternal ao mundo novo da creche, desde o primeiro dia em que ela se sente mergulhada, percebe-se que a prática do inserimento comporta verdadeiros ritos de passagem que estruturam o que foi definido como uma “iniciação”. Essa iniciação é constituída de duas experiências complementares e opostas: ela ajuda a criança a se desligar de um meio e a se adaptar a um novo meio, a se separar de um e a se ligar a outro.
*Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho e da Cairu. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, da Academia Mater Salvatoris, Sócio da Associação Nacional de Interpretação do Patrimônio, Sócio Efetivo do Instituto Genealógico.