Saulo Marden 30 de agosto de 2008


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Celeste recolhida no quarto rezava em silêncio diante do oratório. A imagem do Sagrado Coração de Jesus iluminada pela chama da vela era a confidente das alegrias e tristezas; dos pedidos e dos agradecimentos. Ao terminar a prece, ainda de coração doído, disse para si mesma: Meu Deus, por que as coisas da vida mudam com tanta rapidez? Apesar de estar distante do oratório e ter fechado as portas e janelas a chama da vela tremulou. Ela não percebeu. De repente, como se alguém lhe falasse ao ouvido, escutou: a vida é assim mesmo não reclame mas aproveite o momento porque ele jamais será o mesmo não faça como eu fiz porque a constante renovação é quem mantém a chama da vida acessa.
Sem suportar o que havia escutado, pensou no marido. Emocionada, com as lágrimas escorrendo, olhou em todas as direções. Por alguns segundos a razão foi dominada. Aquelas palavras pausadas, de som grave, davam-lhe a certeza de que ele estava ali. O coração acelerado dificultava o entendimento e a impedia de raciocinar. Com muito esforço conseguiu controlar a respiração, mas a lembrança do sepultamento se instalou e sem se controlar: há sete dias nesta mesma hora estávamos juntos e hoje cada um no seu mundo o que não é justo será que tem sentido o que ouvi ou foi o cansaço da noite mal dormida pode também ter sido um cochilo deve ter sido isso.
A chama estremeceu para um lado, para o outro e o quarto encheu-se de luz: Meu Deus o que está acontecendo? De onde vem este brilho tão intenso? Sentiu um arrepio. Passou as mãos nos braços como quem se aquece e de novo ouviu: Me perdoe. Recebi mais do que dei. Na minha vontade de viver fugi da tolerância, da compreensão, do amor. Estava tão perto e não consegui segurar por mais tempo a felicidade. Fui um tolo. Ela me abandonou deixando a morte executar a tarefa. Agora só resta a despedida. Não posso levar o sabor dos teus lábios, a maciez da tua pele e o perfume do teu corpo. Estou pronto para te deixar. Deixar esta casa. Tomarei outro destino na imensidão do Universo. Se algum dia me for dada a chance de escolher, pedirei para ficar mais uma vez contigo, se assim o quiseres.
Afogada nas lágrimas do arrependimento, sem tirar os olhos da imagem de Cristo, Celeste viu a luz perder a intensidade e a chama se apagou. As folhas de papel sobre a escrivaninha, açoitadas voaram pelo quarto espalhando-se pelo chão. Dominada pelo sentimento de quem lutou contra o tempo numa batalha desumana procurou afastar a angústia dirigindo-lhe a palavra: Fique em paz. Você está livre deste mundo de sombras. Espere minha hora e, se nos for permitido, nos encontraremos; tenho certeza.

Uma outra voz ecoou no quarto: Não se desespere. Ele voltará, acredite. Toda ida tem volta. Celeste saiu cabisbaixa, deprimida, desconfiada, vazia de pensamento. Aos poucos as idéias foram surgindo, clareando, trazendo a razão. Sem mágoas, sem rancor, recompôs-se. Corpo e alma em sintonia. O corpo sadio, forte, firme. A alma alerta…

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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