Perco-me nas vozes do mundo – na voz do sino, do vento, do pranto, do grito de dor. Perco-me nos odores, das plantas, do incenso, no cheiro das madrugadas, da chuva molhando a terra quente.
A força do mundo prende-me os pés, mas não consegue deter meu pensamento. Meu lado pássaro atravessa minha liberdade e falo contigo em todas as partes do mundo. Teu lado em branco me espera. Preciso te escrever, te pintar, te dizer, colocar som nos teus pensamentos. Desperto pelos sentidos, com o odor das plantas silvestres que nascem a cada dia de sua própria morte.
Quero me isolar da loucura do nada. Dos enigmas do que é. Tenho o meu não mundo esperando palavras, sons, odores para me libertar de uma voz incensada, sonorizada pela dor, maculada pelo som dos sinos, pela luz do sol na alma triste que se perde na luxúria dos movimentos da criação. Do teu ventre saiu a alma sem corpo que me ferrou com sua marca.
Os sons agonizam na desafinação do piano. Bandolins ressuscitam os pierrôs e arlequins afagados ou esmagados pela força do não. Paro escuto. Integro-me ao som das partituras. Minha sombra levita como se fosse corpo. Por toda parte a luz, energia existencial de muitas forças, que atravessa corpos e se infiltra pelas frestas das portas como um riso tênue em face retangular. É o segredo desvendado que se anuncia e me prende, me perde e me acha. Loucura anterior a uma fria lucidez anunciada. Então insurjo-me contra as fórmulas que tentam me explicar, me resolver como um problema. Desintegrada não sou nada, conjunto vazio. Cada pedaço de mim contém uma informação onde circula a vida em fragmentos – o sangue, o vitral brincando de arco-íris, o lobo uivando no fundo do mar, a porta atravessada pela luz. Insurjo-me contra a luz que se insinua através das minhas fraquezas, contra a forma que sou porque cada fragmento contém de mim um eu diferente. Não me reconheço. Perco-me nos resultados.
Amo o complicado de tua alma simples. A simplicidade é cúmplice do silêncio.
Pássaro indefeso escuta o som. Não é do vento, não é do fogo queimando a mata, não é da pedra rolando a ribanceira. O pássaro ouve o som, antes que possa sabê-lo, a vida se foi. Ninguém lhe disse – era o som do homem. O som do homem no estampido da morte.
Pedras por todos os caminhos. Em suas artérias o sangue sinaliza a alma das coisas. Loucura de copiar o sol. Prender a vida em veias energizadas pelo homem. No mistério da luz a divindade do mundo. O homem se perde nas explicações. Se confunde com os resultados de si mesmo.
Desfiz a redondeza do mundo Criei-lhe cantos, ângulos retos. De cada um deles olhos misteriosos contemplam, vasculham almas e vidas estagnadas. São olhos de sal e som. Olhos de sol e água.
O Canto Gregoriano invadiu minha sala. Um canto de parede onde repenso o meu cansaço onde minhas mãos trabalham regendo uma orquestra de letras, de palavras, de mentiras.
Cantos que pertencem a inocentes antigos, inocentes mentirosos que no espaço da vida e da morte inventaram histórias de faz-de-contas. Era uma vez…