Marcelo Barros 26 de agosto de 2008

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À medida que os jogos olímpicos em Pequim vão chegando à sua conclusão, grande parte da humanidade se pergunta que herança para o futuro da humanidade deixa esta Olimpíada. Durante dias e dias, os jogos ocuparam nossas televisões e jornais. Órgãos da imprensa que, no começo pareciam apoiar um boicote à China, por causa do desrespeito aos direitos humanos, se renderam ao lucro que lhes era proposto. Os apoteóticos espetáculos oferecidos na inauguração e no encerramento dos jogos mostravam um mundo aparentemente unido. Parecia que as guerras deram lugar às competições esportivas. A humanidade inteira se tornava criança ou adolescente que vibra e torce por seus atletas.

Por trás dos palcos e das arenas, a realidade é mais complexa. A China mostrou uma força que vai muito além dos estádios. Governos e empresas se puseram de acordo em proporcionar pão e circo às massas e, assim, dissimular a realidade cruel que, nos mais diversos países, infesta a vida cotidiana das pessoas, no campo e na cidade. Os jogos olímpicos desviaram a atenção dos bilhões de telespectadores, da vida real e dos grandes desafios sociais e políticos que a humanidade enfrenta nestes dias. Mesmo durante os jogos, no dia 08 de agosto, as forças armadas da Geórgia, apoiadas e financiadas pelos Estados Unidos, atacaram a província da Ossétia do Sul que ficou sob o protetorado russo. Imediatamente, a Rússia atacou por terra, por ar e por mar, o território da Geórgia, que não contou como o apoio esperado de Bush e, hoje, chora pelo menos dois mil mortos e vinte mil desabrigados. Os analistas internacionais estão convencidos de que é iminente um ataque de Israel contra o Irã e o revide dos países árabes contra Israel e contra os Estados Unidos que o patrocinam. Na Europa, o Parlamento aprova uma lei racista e cruel contra os migrantes. E durante os jogos olímpicos, todo mundo faz de conta que nada disso existe.

De fato, desde o começo de sua história, a vocação dos jogos olímpicos é servir à relação entre os povos e contribuir para a convivência amiga entre a juventude dos mais diversos países. A chama olímpica que percorre a terra inteira apela para a paz e para o diálogo entre as diferentes culturas e raças. No colorido das bandeiras, na pluralidade dos hinos nacionais e no brilhantismo dos homens e mulheres que se consagram aos mais variados esportes, transparece um olhar positivo e amigo para toda a humanidade. A herança mais profunda destes jogos deveria ser a de que os conflitos internacionais e regionais podem sempre ser resolvidos como se acertam as regras e se dão as partidas amigáveis entre as diversas equipes de atletas.

Infelizmente, a mistura entre esporte e comércio, assim como entre esporte e políticas governamentais é cada vez mais tenebrosa. As equipes precisam de patrocínio e as empresas as apóiam. Os governos querem se identificar com os seus países e seus atletas. O problema é que, além de fazerem dos jogos vitrines dos seus produtos, incentivam nos esportes um aspecto que este já continha, mas não tão exacerbado como agora: o espírito de competição e de concorrência. É quase inevitável que os jogos tenham incentivado mais ainda o culto ao corpo sarado, ao ser humano máquina. Nos mais diversos esportes, acabaram, de alguma forma sugerindo ou inculcando o ideal do mais forte, mais ágil, mais capaz e mais bem sucedido. Em seu famoso livro “Educação após Auschwitz”, o filósofo alemão Theodor Adorno destaca a necessidade de se evitar na formação cultural dos jovens a promoção à virilidade, ao ” ser duro” e à indiferença à dor do outro, elementos comuns em vários esportes de competição. “Quem é rigoroso consigo mesmo não tem dificuldade de sê-lo com os outros, dando continuidade ao ciclo da violência”. Ele recorda como na Alemanha nazista o ideal do homem ariano, belo e forte, culminou no extermínio de milhares de deficientes físicos, deficientes mentais e idosos.

Por seu caráter internacional e sua história tão rica, os jogos olímpicos não mereceriam esta crítica. Se, no passado, eles foram usados por regimes ditatoriais, (em 1936 na Alemanha nazista, em 1980 em Moscou, como em 1968 na Argentina da ditadura militar), compete a todos nós que eles sejam resgatados. Sua herança deve ser a da convivência plural e do internacionalismo e não a competição e o elitismo corporal. É preciso que eles nos apontem para a vida e não para a ilusão. Na carta aos coríntios, Paulo alude aos jogos, ao lembrar que todos correm, mas um só ganha a taça. Nós, espirituais, devemos correr de forma que todos ganhemos, não uma taça corruptível, mas a coroa imperecível da vitória divina (1 Cor 10).

* Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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