Deliciei-me com a doçura do seu artigo sobre o açúcar e as origens da sua exploração e industrialização. Esse assunto trouxe-me à baila recordações da minha infância, quando eu passava férias de julho, no engenho dos meus avós maternos, em Barbalha, no Ceará. Não sei se você alguma vez chegou a conhecer um engenho de moer cana de açúcar para fazer um produto rudimentar e primário chamado rapadura. Era uma temporada maravilhosa para nós crianças. De madrugada, mais ou menos pela 04:00 hs., o apito do engenho nos acordava. Ainda trago na lembrança aquele som agudo varando o amanhecer, para chamar os trabalhadores para a lida do dia. Os engenhos eram movidos a vapor, através de uma caldeira imensa que fornecia energia para mover as moendas de espremer a cana. Por isso, o primeiro a chegar era o mestre caldereiro que tinha por obrigação ligar a caldeira para fazer funcionar o motor ou era o contrário, ligar o motor para esquentar a caldeira que ia fornecer energia para moer a cana. Lembro-me de que, nós crianças, não podíamos entrar na casa da caldeira, por ser perigoso e pelo calor insuportável que lá havia. Depois iam chegando os “cambiteiros”, eram adolescentes e rapazes jovens que moravam no sítio do engenho e iam ao canavial buscar a cana que a essa hora da manhã já estava sendo cortada pelos cortadores. Os cortadores eram outros homens já adultos que cortavam a cana manualmente, com grande facões. Lá pelas 05:00 hs., começavam a chegar as cargas de cana, em lombos de burros, mais ou menos em caravanas animadas pelo alarido e gritaria dos “cambiteiros” entre si e na condução dos animais. Essas cargas de cana cortadas eram levadas às moendas que eram formadas por pesadas peças cilíndricas de ferro, superpostas, girando para amassar a cana, da qual fluía a “garapa”, ou seja o caldo da cana. Também, ainda, tenho na mente o sabor da garapa aparada em canecas de flandres que o mestre das moendas aparavas para nós. Era glicose pura. Tão energética que uma vez, meu irmão tomou e quase desmaiou, pois como se dizia naquele tempo, a garapa caiu-lhe na fraqueza.

Das moendas, o caldo da cana era conduzido por meio de valas para o cozimento, que se processava em enormes tachos de cobre sobre fogo produzido e alimentado pelo próprio bagaço da cana, previamente ressecado. Assim é que, depois de moída a cana, o bagaço era ressecado ao sol no pátio do engenho. Aquilo era para nós como um rio de bagaço, onde corríamos e caíamos, sem nos machucar, ficando, apenas, com muitas coceiras pelos braços e pernas. Mas, aquilo para nós, era uma festa diária, irmos ao engenho beber garapa aparada nas moendas. O cozimento do caldo era feito passando de um tacho para outro, em canecões de flandre, até que ficasse limpo das impurezas que iam subindo com a fervura. Era uma decantação, até que o caldo começasse a engrossar limpo e avermelhado. Então vinha o mestre dar o ponto e aquele último tacho era despejado em formas de madeira retangulares, iguais a tijolos, onde a rapadura ficava a esfriar até endurecer, sendo depois retirada e armazenada. Estava pronta a rapadura. Esse produto era levado para os chamados armazéns de rapadura para ser comercializado e consumido. Era o carro chefe da economia da região, pois a rapadura era vendida para todo o Nordeste, para consumo pessoal e para refino.

Essas são as reminiscências felizes de uma infância despreocupada e inocente. Entretanto, havia, também, o aspecto humano e social que na época, eu não tinha discernimento para aquilatar. Naquela época eu percebia todo aquele movimento em torno da moagem da cana como uma coisa boa que proporcionava uma situação nova de alegrias e brincadeiras a todos nós crianças, que passávamos férias escolares no sítio do engenho. Ali brincavam juntas as crianças da família e as crianças filhas dos moradores, sem qualquer preconceito, nem por parte dos nossos avós. Para mim, pessoalmente, foi uma época mágica e feliz.

Somente depois é que pude perceber como era pesado aquele trabalho, desde a madrugada até à noitinha, dos canavieiros, dos mestres do engenho e dos próprios cambiteiros. Em geral, tratavam-se de pessoas simples analfabetas ou semi-analfabetas, cujo ganha-pão se resumia no trabalho da cana. Observe-se que esse trabalho era temporário, pois durava, no máximo uns três ou quatro meses, enquanto se colhia a safra da cana. Depois a maioria dos trabalhadores ia embora, ficando apenas, aqueles que moravam no sítio do engenho e eram considerados moradores por serem pessoas que depois seriam aproveitadas no plantio da nova safra.

Não havia regulamentação trabalhista. O dono do engenho era o senhor absoluto que fazia as regras e ditava o preço do dia de trabalho. Ele fornecia a alimentação que era constituída de café, almoço e janta, feitos na casa grande do sítio, pertencente a meus avós, para onde se mudavam, durante a moagem da cana. O sítio não ficava longe da cidade, Barbalha-CE., tanto que atualmente, o local já é considerado zona urbana, com ruas margeando a estrada que leva à cidade.

Lembro-me das horas de refeição, em que o engenho apitava chamando a todos para irem receber seu quinhão. A comida era feita em enormes panelões e repartida pelas mulheres da cozinha, ajudadas pelas moças da casa. Eu gostava de ver aqueles homens todos recebendo sua comida e comendo com um apetite de quem realmente estava com muita fome. Comiam e voltavam ao trabalho até o fim da tarde.

No fim de cada semana, no sábado à tardinha, o engenho parava e os trabalhadores vinham receber seu salário. Tenho na memória, meu avô sentado na calçada da casa com uma caixa cheia de notas e moedas e uma caderneta onde anotava os pagamentos, referentes aos dias de trabalho. Não havia recibo, Cada um recebia o que tinha direito e ia embora até a próxima semana. Não havia fiscal do trabalho, nem sindicato, nem sequer reclamação por parte dos trabalhadores. Era um regime senhorial que perdurou muitos anos, não só nos muitos engenhos da região do Cariri-CE, mas, também, nas usinas de açúcar, em Pernambuco.

Somente no governo de Miguel Arraes, em Pernambuco, é que as coisas começaram a mudar e em vez de os trabalhadores da cana ficarem desempregados depois da colheita e moagem da cana, ele instituiu um programa chamado “Chapéu de Couro”, que assegurava manutenção e assistência aos canavieiros durante a entre-safra.
Era uma situação desumana. Não havia escola, nem posto de saúde, nem lazer. As crianças nasciam nos sítios de engenhos e de usinas de açúcar e aquela situação ia passando de pai para filho. Era um círculo vicioso de pobreza e subdesenvolvimento que não apresentava perspectivas de melhorias sociais e humanas.

Hoje, felizmente, é tudo diferente. Os sindicatos e as organizações sindicais estão atentas a tudo o que diz respeito ao trabalho no campo. O trabalhador tem carteira assinada, recebe salário da categoria e tem assistência de saúde e jurídica, além de aposentadoria depois de determinado tempo de serviço. Sendo que, em função dessa grande injustiça que foi perpetrada no campo, ao longo de décadas, foi instituída, posteriormente, a aposentadoria rural, em que o trabalhador se aposenta sem ter contribuído, somente pela comprovação de ter trabalhado no campo, no regime anterior.

De fato, o ciclo da cana de açúcar, trazido pela colonização, foi doloroso e Pe. Vieira tem razão, pois a riqueza trazida para Pernambuco e São Paulo através da cultura e exploração da cana de açúcar era fruto do suor e sangue de escravos no tempo do Brasil colônia, mas também, de muita servidão dos trabalhadores, mesmo depois, durante séculos.

Infelizmente o capitalismo é assim, para que poucos obtenham dinheiro e poder é necessário que muitos sejam sacrificados e permaneçam sem nada, ou quase nada. Não há e nem haverá nunca igualdade de condições humanas no capitalismo. Talvez, no socialismo consciente e democrático. É por isso que o mundo deveria perseguir essa utopia, o socialismo.

A propósito, e apenas fazendo alusão àquele malfadado e-mail sobre Cuba, é sempre bom saber que em Cuba não há trabalho escravo, nem prostituição, nem aliciamento de mulheres e crianças para a prostituição, o que era feito como “modus vivendi” pelos americanos em Cuba, antes da Revolução Cubana.

*Resposta minha a um e-mail recebido de José Alberto

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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