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Em Goiás, durante esta semana, milhares de romeiros viajam dos mais diferentes recantos do Estado em direção ao santuário do Divino Pai Eterno em Trindade. Nestes mesmos dias, no sertão da Bahia, o santuário do Bom Jesus da Lapa reúne milhares de peregrinos, em mais uma Romaria da Terra e da Água. Também em outros continentes, santuários de peregrinação, do Cristianismo e de outras religiões, registram grande aumento no número de visitantes.

Em um mundo no qual, cada vez mais, o sentimento religioso parece rarear e a fé é vista como sentimento restrito à vida privada, multidões fazem o caminho de Santiago de Compostela, visitam a Virgem de Lourdes, como também a cada ano, aumenta o número dos muçulmanos, peregrinos a Meca e dos hinduístas que visitam as fontes do Ganges, onde, conforme a tradição sagrada, o céu se encontra com a terra.

Em alguns destes santuários, as autoridades tomam medidas especiais de segurança para evitar violências e roubos. Em todas as religiões, as pessoas cumprem rituais de peregrinação, mas nem sempre, ligam a relação com Deus com a atitude interior de compaixão e cuidado com a Paz. Desde os tempos da Bíblia, os profetas chamavam a atenção para ocorrência de crimes durante peregrinações (Cf. Jr 7 e 23). É destas profecias que vem as queixas de Jesus: “Minha casa é casa de oração e fizeram dela um covil de ladrões” (Jo 2, 13 ss) … “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está distante de mim” (Mt 15, 8).

O próprio Jesus gostava de romarias e fez muitas peregrinações ao templo, como era o costume religioso do seu povo; Entretanto, como profeta, ensinou que somos todos chamados a uma peregrinação permanente e mais radical, não a um santuário construído de pedras e sim de carne e de amor que é o sacrário do próprio coração.

Na Bíblia, os profetas insistiram que a principal devoção querida por Deus é a conversão do coração. Deus é luz do universo, é maior do que tudo e nenhum de nossos templos ou santuários pode cabê-lo. Podemos, sim, ir a santuários, como sinal e expressão de que o queremos morando no mais profundo de nosso coração. E esta é a peregrinação essencial: ir ao mais íntimo do nosso eu e ali escutar a sua Palavra e cumprir a sua vontade.

No mundo atual, isso ainda é mais urgente, visto que a civilização técnica se desenvolveu muito “para fora” e, cada dia, as pessoas têm mais dificuldade de silêncio e interioridade. Mas, Jesus insiste: “Quando quiseres orar, entra no quarto íntimo da casa e o Pai que vê o mais secreto te escutará” (Mt 6, 6). Esta oração do coração vai além do culto. É uma atitude fundamental de vida. É um compromisso de constante transformação interior. Paulo escreveu aos romanos: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos interiormente” (Rm 12, 1). Esta opção de se converter permanentemente é a caminhada que se faz não com os pés, mas com o coração e a vida. A romaria do coração precisa ser alicerçada em uma opção ética de relação humana e cuidado com a natureza.

Ética é uma palavra que vem do grego ethos (modo de viver) e significa os fundamentos e critérios do comportamento humano. Muita gente vive um caminho ético, sem necesssidade de referência direta a Deus ou a alguma religião. Outras pessoas se colocam no caminho da justiça e da paz por reconhecerem nesta direção o apelo divino. O gesto de peregrinar é pessoal, mas a tradição das romarias é sempre comunitária. A festa é coletiva. A fé e a conversão também precisam desta abertura ao outro. Jesus esclarece: “se estiveres no santuário para apresentar tua oferenda e te lembrares que teu irmão tem qualquer coisa contra ti, deixa ali mesmo tua oferenda e vai primeiro te reconciliar com teu irmão” (Mt 5, 24). Sem cuidado com a justiça e reconciliação com o outro, a oração é inútil. A interioridade é alimentada pelo cuidado com o outro.

Hoje, vivemos em um mundo no qual as peregrinações são diversas, como são muito diferentes entre si as culturas, religiões e opções de vida. Deus nos chama a conviver com estas diferenças e não somente respeitá-las, como mais ainda: aprender a amá-las e seguir Jesus Cristo através da comunhão com os outros diferentes de nós.

Nas comunidades cristãs primitivas, costumava-se dar ao irmão que viajava a uma terra distante um pedaço de um jarro de barro. Na volta, ele seria reconhecido quando aquele fragmento fosse reunido aos outros fragmentos e conseguisse formar o jarro. Que simbolismo bonito e atual. Até hoje, cada peregrino ou peregrina do Divino viaja, fiel ao pedaço de jarro que carrega consigo. Mas, deve saber que não tem consigo o jarro inteiro. Tem apenas um pedaço. Para cada um de nós, o todo, o conjunto, ainda é desconhecido. O meu pedaço de verdade não é a mistura de tudo. É um fragmento que precisa do outro para ser compreendido corretamente. Como a verdadeira divindade, também o mais íntimo do ser humano é secreto e somente no encontro com o diferente descobre-se a si mesmo.

* Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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