1 de julho de 2008

Em Goiás, durante esta semana, milhares de romeiros viajam dos mais diferentes recantos do Estado em direção ao santuário do Divino Pai Eterno em Trindade. Nestes mesmos dias, no sertão da Bahia, o santuário do Bom Jesus da Lapa reúne milhares de peregrinos, em mais uma Romaria da Terra e da Água. Também em outros continentes, santuários de peregrinação, do Cristianismo e de outras religiões, registram grande aumento no número de visitantes.
Em um mundo no qual, cada vez mais, o sentimento religioso parece rarear e a fé é vista como sentimento restrito à vida privada, multidões fazem o caminho de Santiago de Compostela, visitam a Virgem de Lourdes, como também a cada ano, aumenta o número dos muçulmanos, peregrinos a Meca e dos hinduístas que visitam as fontes do Ganges, onde, conforme a tradição sagrada, o céu se encontra com a terra.
Em alguns destes santuários, as autoridades tomam medidas especiais de segurança para evitar violências e roubos. Em todas as religiões, as pessoas cumprem rituais de peregrinação, mas nem sempre, ligam a relação com Deus com a atitude interior de compaixão e cuidado com a Paz. Desde os tempos da Bíblia, os profetas chamavam a atenção para ocorrência de crimes durante peregrinações (Cf. Jr 7 e 23). É destas profecias que vem as queixas de Jesus: “Minha casa é casa de oração e fizeram dela um covil de ladrões” (Jo 2, 13 ss) … “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está distante de mim” (Mt 15, 8).
O próprio Jesus gostava de romarias e fez muitas peregrinações ao templo, como era o costume religioso do seu povo; Entretanto, como profeta, ensinou que somos todos chamados a uma peregrinação permanente e mais radical, não a um santuário construído de pedras e sim de carne e de amor que é o sacrário do próprio coração.
Na Bíblia, os profetas insistiram que a principal devoção querida por Deus é a conversão do coração. Deus é luz do universo, é maior do que tudo e nenhum de nossos templos ou santuários pode cabê-lo. Podemos, sim, ir a santuários, como sinal e expressão de que o queremos morando no mais profundo de nosso coração. E esta é a peregrinação essencial: ir ao mais íntimo do nosso eu e ali escutar a sua Palavra e cumprir a sua vontade.
No mundo atual, isso ainda é mais urgente, visto que a civilização técnica se desenvolveu muito “para fora” e, cada dia, as pessoas têm mais dificuldade de silêncio e interioridade. Mas, Jesus insiste: “Quando quiseres orar, entra no quarto íntimo da casa e o Pai que vê o mais secreto te escutará” (Mt 6, 6). Esta oração do coração vai além do culto. É uma atitude fundamental de vida. É um compromisso de constante transformação interior. Paulo escreveu aos romanos: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos interiormente” (Rm 12, 1). Esta opção de se converter permanentemente é a caminhada que se faz não com os pés, mas com o coração e a vida. A romaria do coração precisa ser alicerçada em uma opção ética de relação humana e cuidado com a natureza.
Ética é uma palavra que vem do grego ethos (modo de viver) e significa os fundamentos e critérios do comportamento humano. Muita gente vive um caminho ético, sem necesssidade de referência direta a Deus ou a alguma religião. Outras pessoas se colocam no caminho da justiça e da paz por reconhecerem nesta direção o apelo divino. O gesto de peregrinar é pessoal, mas a tradição das romarias é sempre comunitária. A festa é coletiva. A fé e a conversão também precisam desta abertura ao outro. Jesus esclarece: “se estiveres no santuário para apresentar tua oferenda e te lembrares que teu irmão tem qualquer coisa contra ti, deixa ali mesmo tua oferenda e vai primeiro te reconciliar com teu irmão” (Mt 5, 24). Sem cuidado com a justiça e reconciliação com o outro, a oração é inútil. A interioridade é alimentada pelo cuidado com o outro.
Hoje, vivemos em um mundo no qual as peregrinações são diversas, como são muito diferentes entre si as culturas, religiões e opções de vida. Deus nos chama a conviver com estas diferenças e não somente respeitá-las, como mais ainda: aprender a amá-las e seguir Jesus Cristo através da comunhão com os outros diferentes de nós.
Nas comunidades cristãs primitivas, costumava-se dar ao irmão que viajava a uma terra distante um pedaço de um jarro de barro. Na volta, ele seria reconhecido quando aquele fragmento fosse reunido aos outros fragmentos e conseguisse formar o jarro. Que simbolismo bonito e atual. Até hoje, cada peregrino ou peregrina do Divino viaja, fiel ao pedaço de jarro que carrega consigo. Mas, deve saber que não tem consigo o jarro inteiro. Tem apenas um pedaço. Para cada um de nós, o todo, o conjunto, ainda é desconhecido. O meu pedaço de verdade não é a mistura de tudo. É um fragmento que precisa do outro para ser compreendido corretamente. Como a verdadeira divindade, também o mais íntimo do ser humano é secreto e somente no encontro com o diferente descobre-se a si mesmo.
* Monge beneditino, teólogo e escritor.