Saulo Marden 21 de junho de 2008


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“Sabe quem poderá substituí-lo? O espírito dele que ficou em centenas de corações.”
(Autor desconhecido)

Na juventude da velhice, passava a maior parte das horas em casa, na cadeira de balanço. Os livros, seus companheiros inseparáveis, ajudava a esticar o tempo.
As histórias contadas no ritmo da música da tristeza levavam-no a enxergar as lições da vida. Vida comparada a que conheceu no interior do sertão onde nasceu e cresceu ao lado do sofrimento.
Entre outros tantos bravos, ele deixou a terra em que nascera para tentar a vida na cidade grande. Salário curto, vida regrada. Casar, educar os filhos – única meta. Acostumado a ter pouco com o pouco fazia milagres; uma reserva sempre estava a postos para os dias difíceis.
Ainda moço adoeceu e se aposentou. Daí em diante a vida tomou outro rumo. O vigor que antes fora canalizado para a força física instalou-se na mente. A leitura o alimentava deixando-o atualizado. Gostava de prosar. Sentia-se forte, vivo ao saber que, embora preso em sua própria casa, ainda podia conversar, discutir, dar opinião a quem o procurava. O bate-papo servia de bálsamo fortalecedor. Raros, eram os dias em que um vizinho não o procurava. Fugia assim de entrincheirar-se nos livros e de ser levado a um imaginário distante e distinto do modo em que se encontrava. Lembro-me sentado na cadeira de balanço com os dias minguantes. Livro na mão, rádio ligado, enquanto o mundo lá fora girava sem parar. Ainda assim, nunca reclamava da sorte. Costumava dizer: A vida e a morte são estágios de uma dimensão maior. Um dia me livrarei de tudo isto.
As horas de repouso eram mínimas: uma após o almoço e quatro na madrugada, quando as idéias perdiam o brilho, cediam ao sono. Quando perguntado sobre o que sonhara respondia: Não me lembro. A alma continuava presa ao seu mundo – a casa. Nem por isso sentia-se entregue. Via a vida passar, mas não se entregava, mesmo que fosse difícil vivê-la. Nos dias mais sombrios empurrava de lado a solidão, o ostracismo embriagando-se com os diálogos. Certa vez, presenciei um:
– Eronides, já soube que Jerônimo vai se casar?
– Não. Com quem?
– Feliciana, a filha de Paulino, lembra-se?
– Fe li ci a na? Não acredito. Você tem certeza que é a filha de Paulino?
– Claro.
– Impossível! Ele mesmo me disse que jamais se casaria com ela!
– Pois é. Mas, quando soube que o pai tinha umas terras, mudou de opinião, resolveu casar.
– Samuel, onde já se viu dinheiro comprar felicidade.
– Tem razão, mas ele não pensa assim.
– O que trás felicidade é ser compreensivo, saber ouvir e agir nas horas certas com poucas palavras. Sugerir ao outro uma alternativa e deixar que assuma a idéia.
– Até certo ponto concordo com você. Mas, quando se visa dinheiro, por mais que se alerte sobre os riscos e os problemas que surgirão depois, ninguém aceita observações.
– Depende. Pode ser que a convivência mude as intenções. Entretanto gostar mesmo, sentir amor pelo outro, será difícil. Não considero impossível. Mas, neste mundo, com boa vontade, se consegue tudo. Depois, talvez ele enxergue que o dinheiro não lhe deu felicidade e mude de atitude.
– Ainda acho que, mesmo assim, se ele quer casar porque pensa em ter conforto com o dinheiro dela, dificilmente mudará as intenções.
– Jerônimo não está sendo sincero, nem com ela, nem com ele mesmo. Depois de algum tempo, vai descobrir que não valeu a pena. Ele pode até ganhar muito dinheiro, mas não o deixará feliz. Ela poderá demonstrar amor por ele sem receber? Será difícil. Eles vão conviver num mundo de falsidades. A vida de um casal deve ser construída em cima da lealdade. A sinceridade gera confiança, une. A falsidade separa. A harmonia gera compreensão. A desavença a incompreensão.
– Tem razão, se confiarmos em quem fala, acreditaremos no que ouvimos.
– A conversa é um bom começo para os que querem se acertar. Nada melhor do que concluir uma boa prosa enxergando uma saída para os problemas ou um sentido para a vida. Ficará mais fácil se o outro compreender que existe cumplicidade na busca de uma alternativa.
Era assim que Eronides enfrentava o mundo, apesar dos maus momentos que passou. Várias vezes o ouvi dizer: Deus sempre nos surpreende. Se for coisa ruim tento esquecê-las, substituí-las, eliminando-as da mente executando alguma coisa. Às vezes faço uma troca. O prazer de executar, seja lá o que for, nos faz esquecer, nos distrai e alivia o pensamento. Experimente. Veja como é fácil.
Desta forma, levava a vida. Lado a lado, juventude e velhice. Estado terminal do corpo, não da alma, nem do espírito. Ele acreditava que o espírito após a morte do corpo se integrava ao todo, ao cosmo para depois quem sabe para que… E não concluía. Outra vez me disse: Há vida em tudo. Até na morte há vida. O estado permanente de transformação da matéria faz da morte, vida.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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