([email protected])

Werner, um abraço. O desabafo é de quem luta contra a solidão e faz das lembranças alentos para suportá-la.
Há dias em que cedo ao tédio deixando-o dominar a mente e a impedi-la de pensar no amanhã. A fé em Deus, fugidia. A única coisa a fazer é andar e os poucos passos entre as paredes, tornam-se quilômetros. Quando o corpo cansa, deixa a mente solta e me lembro das coisas boas da vida. Vida curta, bem vivida.
Sei que o advogado que você ajudou a contratar faz o possível para diminuir o meu tempo aqui na penitenciária. Se depender de comportamento, garanto-lhe que não pode haver melhor.
A forma que encontrei para enfrentar os pensamentos do passado foi escrevendo. Leia este texto e mande sugestões:

Da janela eu observava o vai-e-vem das crianças na rua. A chuva caía forte. Para uns, alegria. Para outros, tristeza, desesperança. O tão esperado dezenove de março, dia de São José, trouxera a confirmação do inverno em toda a região e me levava a lembrar o passado.
A algazarra das crianças: Ah! Como sinto falta daqueles bons tempos; dos amigos; das brincadeiras na chuva; das noites em que sentados na calçada, ouvíamos seu Bené contar histórias assustadoras ou aventuras de caçador.
Com a vida limitada a esta cela, tenho a solidão como companheira inseparável. Entretanto, há dias em que ela não me consola, deixa de ser confidente nas lembranças. Outras vezes leva-me à parte boa do passado Daqui a um mês os umbuzeiros devem ter frutos maduros. Quanto era bom sentar à sua sombra, comer do fruto, esperar a revoada dos marrecos na boca da noite, sentir o cheiro da terra úmida e andar descalço; ir até o riacho, lavar o rosto, beber a água cristalina! Essas recordações alimentam minha alma. Trazem esperanças, amortecem a tristeza para não ficar louco. Não posso deixar que as boas lembranças me faltem.
A vida foi amarga comigo. Tudo poderia ter sido diferente se não me deixasse dominar pela violência. A valentia descontrolada é perigosa.
Certos dias, a tristeza vem com o propósito de me levar ao desespero. Levanto-me da cama. Volto a caminhar. A recordação daquela noite passa como um filme onde a artista era Rosinha. Morena formosa, de andar faceiro e riso inocente. Parecia ter o dom da magia. A todos enfeitiçava. Sem querer ofendê-lo, ela não demonstrava estar caída de amores por você. Parecia sim, gostar dos passeios e das festas.
Lembra-se de quando você passou seis meses na capital? Desculpe-me a franqueza: ela namorou com todos. É “mulher dama”. Eu avisei, você não me escutou. Daí em diante, não quis perder o amigo. Deixei para você descobrir. Ao se aproximar do dia de São José, as suas saídas com Rosinha estavam cada vez mais escassas, lembra-se? A mulher dos seus sonhos evitava sua companhia.
Na tentativa de alertá-lo, convidei-o para ir à festa no sítio. Era certeza encontrá-la. Quando a vi naquele vestido estampado, acima dos joelhos, ombros nus, revoltei-me Esperei que ela saísse do salão. Falei para ela que aquilo não era coisa que se fizesse, que você ainda não a tinha visto, e logo, logo, iria encontrá-la. Ela nem se importou. Disse-me que estava se distraindo e que não iria deixar de dançar por causa de um namorado. Sem ter mais argumentos dirigi-me ao bar. Lembra-se quando o chamei para ir embora? Inventei uma dor de cabeça para sairmos dali. Entre uma e outra ida ao bar, notei que você viu Rosinha dançando. O resto você já sabe.
O tempo passa e nos amadurece. Penso que hoje jamais agiria daquele jeito. Principalmente levar você para o flagrante. Deus foi justo comigo. Castigou-me por não ter evitado o incidente.
Obrigado por manter a minha mente viva. Suas cartas chegam como terapia. Confortam-me. Leio e releio inúmeras vezes. Para lhe escrever, faço do mesmo modo. Inúmeros são os rascunhos. Todos guardados. Ajudam-me a enganar a solidão. Passo horas com cada um deles sem me importar com tempo, seqüência ou assunto.
Aguardo notícias. O amigo,
José de Davi Santos

* * *
Obs.: Este texto foi extraído do livro do autor cujo título é “Conto dos Contos”.
– Imagem enviada pelo autor

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]