Primeiro foi um mal-estar, marcado pelo enjôo. Depois, o enjôo evolui para algo pior, isto é, uma debilidade horrível, e dentro dela, na seqüência, um desmaio, o preto dos olhos sendo substituídos pelo branco, como se rodassem, verdadeiras bolas de gude. Após, ao voltar a si, o corpo se achava inteiramente molhado de suor, como se tivesse, naquele exato momento, tomado um banho e não se enxugado. Tudo começa a causar impaciência, o som, o cheiro de certas coisas. Uma dor imensa no corpo inteiro. Uma fraqueza sem limites. O apetite foi a zero, o liquido se transformando no único alimento. É mais ou menos o quadro da dengue, que eu enfrentei. Mas, vamos ao tempo. Não foi agora, nestes dias de epidemia, em absoluto. A dengue me atacou nos idos de 1986, em Maceió, quando por lá me encontrava como juiz federal da 2a. Vara. Passei quinze dias para me recuperar.

Estamos no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2008. A dengue ainda existe. Incrível como o mosquitinho resistiu a tanto tempo e a tanto governo. De Sarney para Collor, de Collor para Itamar, de Itamar para Fernando, e de Fernando para Lula. E a dengue está aí, adulta, madura, fortalecida pela água estagnada em vasilhames e outras quinquilharias, nos tanques de água, nas poças que se formam aqui e ali, em todos os lugares, enfim. O seu ataque, em massa, parece mostrar que recuou, durante muito tempo, ou se escondeu, para enganar o Governo, e, reunindo forças, no exílio de esconderijos seguros, espalhou seus resistentes soldados, que se reproduziram, celeremente, como moscas, por todo o país, para, num momento certo, reiniciar o ataque, pegando todo mundo desguarnecido.

Não é nem o caso do cavalo de Tróia. Não precisava usar um artifício que a história registra e os filmes exploram tanto. O mosquitinho observou que não havia muros para ultrapassar. A estrada estava inteiramente livre. Os hospitais despreparados, na sua grandíssima maioria. As campanhas de combate esquecidas na cabeça de algum burocrata. A água se acumulando em todos os lugares, favorecendo a procriação de mais soldados, os mosquitinhos nascendo com o veneno no sangue, doidos para picar, na transmissão do vírus que tanto pode levar o paciente à cama, por alguns dias, como pode encher o cemitério de novos cadáveres. E a população distraída, acumulando água estagnada. Tudo favorável ao mosquitinho.

O certo é que a dengue voltou, e braba, enfurecida, ataques em massa, filas nos hospitais deficientes, o número de óbitos aumentando, os noticiários exibindo sepultamentos e lágrimas, a dor estampada nos que perdem o ente querido, precocemente levado para outro mundo, porque o mosquitinho não foi combatido no tempo devido. A epidemia leva-nos a séculos atrás, quando o cólera morbus sepultava populações e populações, as páginas da história se abrindo para o registro do grande número de óbitos. A diferença é que o cólera morbus atacava no meio do século XIX, quando, no momento, salvo engano de minha parte, estamos no início do século XXI. O fato de hoje se torna o mesmo de ontem, só que entre um e outro há mais de um século e meio de civilização, mostrando, de uniforme, a população, que contribui com sua negligência, sujeita as ferradas do mosquitinho, da mesma forma que, nos tempos coevos, se colocava na linha de frente do cólera morbus. A diferença é que, naquelas épocas, a medicina vivia de chá de cidreira e de outros matos. Hoje, bom, o ambiente científico é outro.

O combate ao mosquitinho reclama ação governamental profunda, continuada e séria. Talvez não seja preciso ressuscitar o dr. Oswaldo Cruz, nem alertar o sr. Rodrigues Alves para o perigo da febre espanhola à véspera de sua segunda posse como Presidente da República. Talvez não se torne fundamental preparar as valas com antecedência para os enterros coletivos, nem colocar os doentes em lazaretos, como se fazia nos tempos de antanho. Basta um programa de ações, para tornar o combate mais eficaz. Mas, ação de verdade, no duro, não mero pronunciamento do Senhor Ministro da Saúde, nem uma chamada nos programas de televisão. Não é possível que um mosquitinho desafie o Estado e o Estado permaneça indefeso, sem forças para a contra-reação, nem é factível que a população, distraída, continue dando guarida à procriação do mosquitinho.

Tenho a impressão que epidemia é sinônimo de atraso, de sub-desenvolvimento e de deficiência administrativa. Não consigo conceber como, no início do século XXI, um mosquitinho se torne tão valente e arrogante, a ponto de, sozinho, desafiar o Estado. Ou o mosquitinho é muito forte, ou o planejamento das autoridades é muito deficiente, o que faz com que a sua força sinistra assuma proporções mais avantajadas. Combater é necessário, logo e rapidamente, o mosquinho, desde o nascedouro.
Senão, vai ocorrer aquilo que a anedota atribuída ao pessimismo do Sr. Gracialino Ramos indicava, ante um escritor que, na Livraria de José Olympio, dizia que, em breve, todo o país ia comer m…., o que levou o autor de Vidas Secas a indagar se haveria m….. para todo mundo. O fato me veio a lembrança depois de ler Arnaldo Jabor, há dias atrás, quando, em um dos seus artigos, afirmava que depois da dengue e da febre amarela, ainda haveríamos de atingir a perfeição com a varíola. E, aí, eu, lendo a assertiva, perguntei a mim mesmo se alguém estará vivo para testemunhar. No fundo, pelo que vejo de casos de dengue, nos noticiários que leio, alimento minhas profundas dúvidas.

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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