Djanira Silva 29 de maio de 2008

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Parecia ouvir a voz da mãe: menina, venha jantar, menina vá tomar banho. Quanta saudade. Tão bom que ela ainda estivesse ali preocupada, temendo por ela, amenizando os caminhos e as incertezas da vida. Sentia falta da presença amiga, da mão carinhosa que, embora castigasse, era para ensinar, a corrigir os erros que eram muitos. Castigar, para corrigir, também é amor, também é carinho.
Por ruas e ladeiras correra, brincara e fora feliz. Ladeiras por onde subia e descia, todas as tardes, no bonde puxado a burros não sem antes jogar milho na frente deles para vê-los empacados catar os grãos por entre os trilhos. Às vezes chegava em casa fazendo barulho, imitando o apito do trem, e a mãe irritada: cuidado, seu pai está chegando. Falar no pai era um santo remédio. O rosto sisudo, cheio de silêncio e de autoridade, era um freio de mão.
À noite, ela e as outras meninas, corriam ao redor da praça. Atrapalhavam os namoros e confundiam o sacristão já velhinho, quando tocava o sino, bocão autoritário que mandava todo mundo para casa dormir sem sono.
Andava descalça, corria livre pelas ruas, entrava na igreja pela porta da sacristia e saia pela da frente descendo a escadaria de quatro em quatro.
Ajudava um velhinho, todas as manhãs, a subir os degraus para assistir à missa. Mesmo sendo rico, muito rico, dava pena, não tinha família. Andava com dificuldade e ao vê-la sorria: Bom dia, menina. Ela segurava sua mão feliz da vida. Um dia ele ofereceu-lhe uma moeda. Recusou. Não o ajudava para ganhar dinheiro. Bastava-lhe o bom-dia que lhe dava como se ela fosse gente grande. Magoada não voltou nunca mais.
Agora, estava na frente da casa onde vivera quase toda a infância. Casa grande longos corredores, muitos quartos. Alguns, construídos, para armazenar alimentos por causa da guerra, alimentos não perecíveis, isto é, que não estragam com facilidade. Já havia aprendido na escola que existem também os perecíveis, ou seja, os que estragam rapidamente.
Um dia, tirou charque, farinha, feijão e arroz para dar a umas pessoas muito pobres que moravam numa rua atrás da sua casa, gente que mal tinha o que comer. Ali, naquele quarto, tinha muita coisa. Não faria falta se tirasse um pouco. O pai, certamente não faria questão, mesmo sisudo e silencioso, gostava de ajudar os pobres.
Quando a mãe descobriu disse que ela estava errada deveria ter pedido. Não tinha o direito de ter feito o que fez. Confessou ao padre e ele disse que ela fizera uma caridade. Ficou confusa, acreditar em quem?
Ainda não conseguia compreender as diferenças do mundo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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