Ex-Director do INETI* (Coimbra)
Escritor ([email protected])

«Será que as velhas cidades deviam saber resistir aos autarcas que teimam em usar o poder para as querer transformar em novas?» – Perguntou-me uma tia com um sorriso brando que se acentuou quando, torcida de agrado com o seu próprio sarcasmo, acrescentou – «As cidades não envelhecem nem pensam como nós e, por isso, é raro encontrar uma edilidade capaz de se libertar da condição humana para poder entender o pulsar dos burgos que se deram ao estorvo da imortalidade. O teu Monte Formoso ainda se vai safando, tirando o abusivo estacionamento em dupla fila, praticado por uns quantos “Xicos-espertos” que fedem a falta de civismo. Só não gosto do Ingote, embora esteja muito mais colorido. Ingote faz-me lembrar o termo “Ingo”, que quer dizer assa-fétida, uma espécie de goma resinosa de cheiro desagradável que se extraía de uma planta umbelífera.»

De facto, pensando bem, o bairro Monte Formoso não é um “lapsus lingue”. De lá, pode observar-se a fusão do antiquíssimo com o velho e o moderno, ou plagiando a maneira de dizer dos arquitectos paisagistas, de lá vislumbra-se a integração de uma modernidade complacente que não desvirtua a Natureza. Vê-se o arcaico Mondego, o secular Choupal, a velha ponte do caminho-de-ferro, o moderno açude-ponte e o respectivo espelho-de-água, os jovens viadutos e um parque-infantil atapetado com relva mimosa, com salgueiros e chorões que só choram devido ao excesso da poluição automóvel e aos peditórios feitos por um vasto leque de comunidades. O que mais destoa por ali, é a presença da abandonada fábrica de curtumes, a cair de podre, ao fundo da encosta do Cemitério da Conchada, cujo destino é preocupação dos vivos e dos mortos. Do Monte Formoso até se vê “La Rive Gauche” onde se destaca a religiosidade tradicional da cidade, na figura do mosteiro de Santa Clara-a-Nova, e o moderníssimo e excêntrico edifício de uma grande superfície comercial “O Forum”, que tem pela costas os pinhais e as fímbrias da cidade que não servem de cama ao astro-rei..

E tudo isto é tanto mais de admirar, quanto à Casa do Sal já era fora-de-portas e a Urbanização do Arco Pintado ficava nos confins da cidade onde, outrora, existia um vigia da Câmara Municipal e, para lá de fora-de-portas, tudo era permitido. Mas o “ex-libris” arquitectónico do Monte Formoso é o ex-prédio da BMW, uma verdadeira varanda do Mondego que, não obstante já não ter o símbolo daquela marca de automóveis, continua a ser ponto de referência para quem entra ou sai da cidade pelo lado do Choupal. Ressalta aos olhos do vulgo, pela notoriedade que lhe é dada pela sua elegância arquitectónica e pela policromia a condizer com a verdura que abunda por ali. Veremos o que lhe está destinado pela frente.

No entanto, o melhor que o Monte Formoso tem é o ar cosmopolita e histórico dos nomes das suas ruas, que permite, num simples passeio a pé, ter a sensação de se estar a correr o mundo. Ao começar a subir a rua “Cidade de Poitiers”, ninguém deixará de recordar Carlos Martel, o primeiro revés do El Andaluz e Carlos Magno, depois ao virar à esquerda para a rua “Cidade Santa Clara da Califórnia”, o viajante fica com a visão cultural e feérica de Hollywood e da Disneylândia para, ao entroncar na rua e na praceta da “Cidade de Salamanca”, se encher da intelectualidade reinante em Coimbra, revisitada na sua congénere espanhola. Mas, como se isto não bastasse, ao regressar ao ponto de partida, pela rua “Cidade de Santos”, eis que se depara com o encanto dessa admirável parte da costa brasileira cujo mar – manso, azul e pejado de ilhas paradisíacas – beija os pés da Central Nuclear de Angra dos Reis, certamente um equívoco dissonante, eivado de uma ironia não intencionalmente maléfica.

E como “La Rive Gauche” de uma cidade cheia de pontes como Coimbra, me faz lembrar Paris, o boulevard de Saint-Michel, o boulevard de Saint-German e, obviamente, a cultura expressa em toda a sua dimensão, fico pensando quanto da nossa história e valor cultural estão cinzelados na margem esquerda do Mondego que, ao longo de décadas, não tem merecido a promoção e a atenção que lhe é devida. De lá, a velha história se liga à velha torre da universidade e os conventos de Santa Clara-a-Velha e Santa Clara-a-Nova se ligam à Igreja do Carmo, na rua Sofia, onde a Rainha Santa Isabel repousa na sua visita bienal à cidade. Será possível arrepiar caminho no que diz respeito ao apoio às actividades culturais de Coimbra, cujo património histórico e o conhecimento instigam a razão a lutar para que se faça muito mais e muito melhor do que se tem feito? Estou convicto que sim. Se outros municípios, com menos potencialidades, conseguem vencer, por que é que Coimbra não há-de conseguir?!

(Publicado no D.C. de 7 de Março de 2008)

*INETI – Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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